Wednesday, August 15, 2007

Descobrindo os tesouros das profundezas


Primeiro privámos com aquele sentimento ímpar, de quem se mistura diariamente com a Mãe-Terra, através das imagens únicas de Rui Simões, no filme S. Pedro da Cova. Depois descemos rumo às profundezas das entranhas que nos alimentam. É aí que a música evoca a dureza do trabalho dos mineiros, desventrando a terra para lhe retirar os seus tesouros. Quando a tela levanta e as belíssimas imagens de Rui Simões a acompanham, elevando-se, desce uma outra realidade sobre o espectador: num palco repleto de terra quatro homens dançam a vida escura e sem sol dos mineiros. Os jogos de luz, criados por Anatol Waschke e Cristóvão Cunha, redesenham uma realidade onírica naquele mundo desenhado a preto, castanho e ocre. Essa dimensão escura abre o campo semântico aos actores, permitindo-lhes dizer um texto fortíssimo através do corpo e da interacção com bonecos. Esse texto corpóreo coreografa, em inúmeros matizes, a dramaturgia de Cláudia Figueiredo.
A direcção artística de André Borges e Cláudia Figueiredo transformou o mundo nas minas num universo fantástico de seres que iluminam por dentro o lado obscuro da sua vida. Através da dança, do teatro físico e de artes, antes pertencentes apenas ao circo, os actores André Braga, António Júlio, João Vladimiro e Luís Félix acordam o espectador para uma multiplicidade de sentidos, adormecidos por força de uma urbanidade globalizante.
O momento em que se mostram os pés dos mineiros a deslocarem-se vertiginosamente evoca-nos Hermes, fazendo-nos acreditar que aqueles pés facilmente se tornarão alados, partindo ao encontro do seu sol interior.
A cumplicidade entre os homens é manifesta nos jogos entre os carrinhos que se deslocam na minas, mas o momento forte do espectáculo é a sensação esmagadora que o espectador partilha com os mineiros quando começa a cair terra do tecto, ao mesmo tempo que os candeeiros vão baixando a grande velocidade sobre os quatro homens, inertes ante o esmagamento eminente. É um momento em que se partilha o cheiro, a textura da terra e a sensação de impotência perante os acidentes que amiúde ocorrem nas minas. É nesse momento que o poema de Herberto Hélder que deu o mote a esta produção faz sentido: “Penetrar na noite, no vazio, no negro. Um negro infinito. / O corpo sente a sua pequenez e fragilidade. / Recolhe-se. Deixa-se mergulhar no desconhecido. / Quando toca a terra, enche-se de amor por ela. / Um amor sem limites. Um amor sagrado. Religioso. / Sente-a fria e húmida nos pés. Ouve-a respirar. Agarra-a. / Sente que acaba de entrar na sua mais funda intimidade. / Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e passando por mim. E então poderei morrer.”
Depois desta sensação os mineiros não morreram, antes se multiplicaram, insistindo no laborioso trabalho subterrâneo. Quando os candeeiros começaram a subir foi notório o alívio que se sentiu, por ser retirada a sufocante sensação de esmagamento.
Pode dizer-se que esta primeira criação da Circolando para uma sala convencional funcionou, surpreendendo o espectador quase tanto como no espectáculo Giroflé, em que a companhia partilhou com o Algarve em 2005 os sonhos de um jardineiro. Mas a estética do grupo continua singular, impondo uma nova maneira de olhar para o teatro, para a dança, para as artes de palco em geral.
Cavaterra é uma co-produção Sem Rede, Teatro Municipal de Faro, Companhia Circolando, Teatro Viriato e Teatro Aveirense, e conta com o apoio da Fundação Gulbenkian.

No comments: