Dia 22 de Junho o Cineteatro Louletano recebeu a companhia de Dança Oficina dos Sentidos do Teatro Estatal de Hildesheim. Esta companhia, criada por Carlos Matos na Alemanha em 2002, apresentou uma digressão europeu da coreografia de Carlos Matos baseada na obra Desassossego do Bernardo Soares, heterónimo de Pessoa.
O espectáculo de Loulé contou com a participação especial do actor Paulo Matos que interpretou alguns textos do Livro do Desassossego, intervindo directamente na coreografia. A presença e a voz do actor marcam o início do espectáculo, ainda com o pano de boca fechado. O actor contracena com as cortinas enquanto discorre sobre a fragmentação do eu, factor destabilizador e criador do desassossego. “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo e eu não” O pano de boca abre e o actor vê-se perante os inúmeros fragmentos da sua personalidade, que deslizam sobre os seus livros da vida, que se vão cruzando entre si. Os livros são pequenas ilhas onde se guardam os sentidos, sustentando o fragmento de ser que se equilibra
no seu universo de descoberta. A cenografia de Annett Hunger, onde impera o cinzento e o branco, resume-se a duas enormes estruturas em forma de trapézio, uma dela fragmentada, que apontam para o ser em desequilíbrio. O cinzento que se adequa ao estado de espírito do autor ”O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo do monotonia cinzenta pela rua estreita que fito. (…) Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que destaca das fachadas sujas, e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou.” Paulo Matos eleva-se então a um outro plano, observando a cena e os seus múltiplos fragmentários deitado em cima de uma das estruturas cenográficas. “Uma vista breve de campo, por cima de um muro dos arredores, liberta-me mais completamente do que uma viagem inteira libertaria outro. Todo ponto de visão é um ápice de uma pirâmide invertida, cuja base é indeterminável”. Os oito bailarinos, umas vezes em sintonia, outras em assumida ruptura com o seu eu mais próximo passam emoções através de uma técnica irrepreensível e da música de Egberto Gismonti e Nils Petter Molvoer. A luz permanece num registo obscuro, condicente com a obscuridade do eu que se encontra fragmentado e incapaz de sentir a sua luminosidade total. O próprio cenário se fragmenta em três estruturas, gémeas mas com uma identidade própria. Como esclarece Bernardo Soares, “a realidade verdadeira de um objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço.” Os bailarinos demonstram a sua incompletude na violência com que se arremessam contra as estruturas cenográficas.” A minha vida é como se me batessem com ela”. Por momentos compõem figuras andróginas em busca de uma completude.
Há encontros, desencontros, realidades paralelas. De repente uma das estruturas cenográficas avança e transforma-se em pantalha onde é projectado o negativo do eu. O eu que se esconde dor detrás do evidente surge projectado pela câmara clara da nossa vontade de desocultar o obscuro. A imagem transforma-se em silhueta e as palavras do poeta tornam-se vivas na voz do actor, despindo o real do supérfluo, devolvendo ao ser a sua nudez original. E Bernardo Soares recorda ” Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.” O ser esclarecido acerca desta cruel verdade ontológica vai-se despindo das outras ilusões de si mesmo, devolvendo as máscaras às suas personagens e ficando por fim nu, reconciliado com o seu ser original. As réplicas, despidas de si próprias, vão-se num misto de abandono e verdade original, deixando o verdadeiro eu entregue a si próprio. E dentro da sua nudez original o poeta pode afirmar: “Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.”
Este espectáculo, interpretado por Alexandra Bragutti, Igor Kirov, Wencke Kriemer, Philipp Krüger, Marijana Savovska, Fábio Liberti, Anne Schmidt e David Schwindling contribuiu para levar a alma de Pessoa além fronteiras. Forte, sensual, filosófico e pleno de imagens belíssimas, podemos dizer que o espectáculo desassossego de Carlos Matos levantou a ponta do véu do imenso universo pessoano.
O espectáculo de Loulé contou com a participação especial do actor Paulo Matos que interpretou alguns textos do Livro do Desassossego, intervindo directamente na coreografia. A presença e a voz do actor marcam o início do espectáculo, ainda com o pano de boca fechado. O actor contracena com as cortinas enquanto discorre sobre a fragmentação do eu, factor destabilizador e criador do desassossego. “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo e eu não” O pano de boca abre e o actor vê-se perante os inúmeros fragmentos da sua personalidade, que deslizam sobre os seus livros da vida, que se vão cruzando entre si. Os livros são pequenas ilhas onde se guardam os sentidos, sustentando o fragmento de ser que se equilibra
no seu universo de descoberta. A cenografia de Annett Hunger, onde impera o cinzento e o branco, resume-se a duas enormes estruturas em forma de trapézio, uma dela fragmentada, que apontam para o ser em desequilíbrio. O cinzento que se adequa ao estado de espírito do autor ”O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo do monotonia cinzenta pela rua estreita que fito. (…) Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que destaca das fachadas sujas, e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou.” Paulo Matos eleva-se então a um outro plano, observando a cena e os seus múltiplos fragmentários deitado em cima de uma das estruturas cenográficas. “Uma vista breve de campo, por cima de um muro dos arredores, liberta-me mais completamente do que uma viagem inteira libertaria outro. Todo ponto de visão é um ápice de uma pirâmide invertida, cuja base é indeterminável”. Os oito bailarinos, umas vezes em sintonia, outras em assumida ruptura com o seu eu mais próximo passam emoções através de uma técnica irrepreensível e da música de Egberto Gismonti e Nils Petter Molvoer. A luz permanece num registo obscuro, condicente com a obscuridade do eu que se encontra fragmentado e incapaz de sentir a sua luminosidade total. O próprio cenário se fragmenta em três estruturas, gémeas mas com uma identidade própria. Como esclarece Bernardo Soares, “a realidade verdadeira de um objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço.” Os bailarinos demonstram a sua incompletude na violência com que se arremessam contra as estruturas cenográficas.” A minha vida é como se me batessem com ela”. Por momentos compõem figuras andróginas em busca de uma completude.
Há encontros, desencontros, realidades paralelas. De repente uma das estruturas cenográficas avança e transforma-se em pantalha onde é projectado o negativo do eu. O eu que se esconde dor detrás do evidente surge projectado pela câmara clara da nossa vontade de desocultar o obscuro. A imagem transforma-se em silhueta e as palavras do poeta tornam-se vivas na voz do actor, despindo o real do supérfluo, devolvendo ao ser a sua nudez original. E Bernardo Soares recorda ” Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.” O ser esclarecido acerca desta cruel verdade ontológica vai-se despindo das outras ilusões de si mesmo, devolvendo as máscaras às suas personagens e ficando por fim nu, reconciliado com o seu ser original. As réplicas, despidas de si próprias, vão-se num misto de abandono e verdade original, deixando o verdadeiro eu entregue a si próprio. E dentro da sua nudez original o poeta pode afirmar: “Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.”
Este espectáculo, interpretado por Alexandra Bragutti, Igor Kirov, Wencke Kriemer, Philipp Krüger, Marijana Savovska, Fábio Liberti, Anne Schmidt e David Schwindling contribuiu para levar a alma de Pessoa além fronteiras. Forte, sensual, filosófico e pleno de imagens belíssimas, podemos dizer que o espectáculo desassossego de Carlos Matos levantou a ponta do véu do imenso universo pessoano.
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