Nos dias 28 e 29 de Abril o Centro de Artes Performativas do Algarve teve honras de estreia nacional com aquele que foi considerado o melhor espectáculo de dança em 2004 pela cidade de Barcelona. Trata-se de Ölelés, uma coreografia assinada por Jordi Cortés e Damian Muñoz. Este espectáculo, só por si irradia uma miríade de sentidos sustentados em tensões e jogos de poder de uma dignidade notável. Mas esta obra assenta num outro objecto artístico: um romance da autoria de um escritor húngaro, Sándor Márai, intitulado As Velas Ardem Até ao Fim. De facto, a leitura desta obra remete-nos par o universo de tensão observado no espectáculo dos dois catalães. A história é sobre a amizade entre dois homens que se conheceram aos 10 anos e que viveram juntos como “gémeos idênticos no útero da mãe” “A amizade deles era séria e silenciosa, como todos os grandes sentimentos que duram a vida inteira.”.E vemos na interpretação da obra que Jordi Cortez e Damian Muñoz fizeram da obra, que depois de muitos tumultos, de muitos sobressaltos, no fim o que fica é a amizade, o aceitar um copo do outro, quando já não há nada a perder.
No livro um dos dois homens assume o nome enquanto que o outro é nomeado apenas pelo título militar, o que assume desde logo uma diferença simbólica. O general deve o seu estatuto à posição social enquanto que Kónrad conquista aquilo que é de forma notável pela sua cultura, pela sua paixão pela música. Mas é o general que detém o poder. Como tal, é o general que casa com Krisztina, alvo do amor de ambos os homens. Apesar de Kónrad, Krisztina e a mãe do general pertencerem a um mundo de amantes da música e das artes em geral que os colocam na outra margem de pessoas como o general e o seu pai, os dois homens partilham vinte e um anos de intensa amizade. Como descreve o autor, “Mas atrás das mulheres, das representações e do mundo oscilava um sentimento que era mais forte que todos os outros. Só os homens conhecem esse sentimento. Chama-se amizade.” Essa amizade que teve uma suspensão ao fim de duas décadas, retoma o confronto passados quarenta anos, quando as coisas de somenos importância, como as traições do corpo, já deixaram de magoar. É na noite em que os dois homens se voltam a ver que todo o universo passional contido na tensão oscilante que o passado volta e a memória recolhe o que é de facto importante. De que matéria era feita aquela amizade que unia dois homens tão diferentes? Descobre-se, tanto no livro como através dos corpos dos bailarinos que aquela amizade era perfeita porque continha em si também o ódio. “A realidade simplesmente era que tu me odiavas durante vinte e dois anos, com aquela paixão cujo ardor faz lembrar o das relações mais intensas – sim, do amor.” O espectáculo de dança que bebeu da inspiração deste romance húngaro mostra uma atitude corporal intensa que evidencia os sentimentos fortes que os dois homens nutriam um pelo outro. A coreografia começa com o general expectante, agarrando o fio das memórias. Memórias que o podem atingir, como um franco-atirador através de uma mira precisa, como a que o podia ter morto há quarenta anos atrás, quando sentiu a espingarda do seu amigo apontar a uns escassos metros a sua cabeça. Depois há a oscilação de Kónrad. A oscilação entre o dever de lealdade ao seu amigo de infância e o dever de honestidade perante si próprio, seguindo a sua paixão. A oscilação entre a morte do amigo e a sobrevivência da paixão, entre a coragem de um acto bárbaro ou a fuga. O primeiro confronto entre os dois homens dá-se perante um ramo de flores brancas. As flores que marcaram o último jantar entre os dois homens e Krisztine, a mulher do general. Depois desse dia tudo aquilo que era puro, como as flores, ficou destruído. As relações de amizade, de amor, mataram o verbo, havendo uma incomunicabilidade total entre as três personagens até ao dia do reencontro. Um dia em que se vê a cadeira de Krisztine destruída pelo tempo, enterrada, como ela, morta por não ter mais sentido a dar à vida. O jogo harmónico assente nos desequilíbrios entre os dois homens está muito bem conseguido, evidenciando a relação amor – ódio, conseguindo nem sequer resvalar no erotismo. Uma das grandes virtudes deste espectáculo foi manter o espectador atento a essas vertentes da relação homo erótica sustentando a contenção, como uma vela que vai ardendo lentamente até ao fim, sem pressas nem atrasos.
O encontro entre os dois homens durou o tempo das velas arderem até ao fim. As respostas foram respondidas sem palavras. Com olharem. Com corpos que se viram do avesso. Com a violência de quem quer quebrar a estabilidade podre que manteve 41 anos de silêncio. No final, o apaziguamento. Um outro olhar para o semelhante, ao mesmo tempo distante e próximo. É raro vermos a amizade tratada de forma tão adulta e profunda.
Um espectáculo de excelência baseado numa obra-prima da literatura mundial.
No livro um dos dois homens assume o nome enquanto que o outro é nomeado apenas pelo título militar, o que assume desde logo uma diferença simbólica. O general deve o seu estatuto à posição social enquanto que Kónrad conquista aquilo que é de forma notável pela sua cultura, pela sua paixão pela música. Mas é o general que detém o poder. Como tal, é o general que casa com Krisztina, alvo do amor de ambos os homens. Apesar de Kónrad, Krisztina e a mãe do general pertencerem a um mundo de amantes da música e das artes em geral que os colocam na outra margem de pessoas como o general e o seu pai, os dois homens partilham vinte e um anos de intensa amizade. Como descreve o autor, “Mas atrás das mulheres, das representações e do mundo oscilava um sentimento que era mais forte que todos os outros. Só os homens conhecem esse sentimento. Chama-se amizade.” Essa amizade que teve uma suspensão ao fim de duas décadas, retoma o confronto passados quarenta anos, quando as coisas de somenos importância, como as traições do corpo, já deixaram de magoar. É na noite em que os dois homens se voltam a ver que todo o universo passional contido na tensão oscilante que o passado volta e a memória recolhe o que é de facto importante. De que matéria era feita aquela amizade que unia dois homens tão diferentes? Descobre-se, tanto no livro como através dos corpos dos bailarinos que aquela amizade era perfeita porque continha em si também o ódio. “A realidade simplesmente era que tu me odiavas durante vinte e dois anos, com aquela paixão cujo ardor faz lembrar o das relações mais intensas – sim, do amor.” O espectáculo de dança que bebeu da inspiração deste romance húngaro mostra uma atitude corporal intensa que evidencia os sentimentos fortes que os dois homens nutriam um pelo outro. A coreografia começa com o general expectante, agarrando o fio das memórias. Memórias que o podem atingir, como um franco-atirador através de uma mira precisa, como a que o podia ter morto há quarenta anos atrás, quando sentiu a espingarda do seu amigo apontar a uns escassos metros a sua cabeça. Depois há a oscilação de Kónrad. A oscilação entre o dever de lealdade ao seu amigo de infância e o dever de honestidade perante si próprio, seguindo a sua paixão. A oscilação entre a morte do amigo e a sobrevivência da paixão, entre a coragem de um acto bárbaro ou a fuga. O primeiro confronto entre os dois homens dá-se perante um ramo de flores brancas. As flores que marcaram o último jantar entre os dois homens e Krisztine, a mulher do general. Depois desse dia tudo aquilo que era puro, como as flores, ficou destruído. As relações de amizade, de amor, mataram o verbo, havendo uma incomunicabilidade total entre as três personagens até ao dia do reencontro. Um dia em que se vê a cadeira de Krisztine destruída pelo tempo, enterrada, como ela, morta por não ter mais sentido a dar à vida. O jogo harmónico assente nos desequilíbrios entre os dois homens está muito bem conseguido, evidenciando a relação amor – ódio, conseguindo nem sequer resvalar no erotismo. Uma das grandes virtudes deste espectáculo foi manter o espectador atento a essas vertentes da relação homo erótica sustentando a contenção, como uma vela que vai ardendo lentamente até ao fim, sem pressas nem atrasos.
O encontro entre os dois homens durou o tempo das velas arderem até ao fim. As respostas foram respondidas sem palavras. Com olharem. Com corpos que se viram do avesso. Com a violência de quem quer quebrar a estabilidade podre que manteve 41 anos de silêncio. No final, o apaziguamento. Um outro olhar para o semelhante, ao mesmo tempo distante e próximo. É raro vermos a amizade tratada de forma tão adulta e profunda.
Um espectáculo de excelência baseado numa obra-prima da literatura mundial.
No comments:
Post a Comment