Tuesday, August 14, 2007

Teatro ao Largo


O Teatro ao Largo apresentou em Alte o espectáculo Doutor Fausto, a partir da obra Trágica História do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, encenada por Stephen Johnston. Este espectáculo foi integrado no VIII Festival de Teatro de Alte, organizado pelo Teatro da Estrada e que também levou a esta aldeia do barrocal grupos como o Agora Teatro com o espectáculo Histórias e Partituras, o Vicenteatro, interpretando Vem Cá Amanhã Que Eu Vou Fitar Hoje e o espectáculo de José Carlos Alegria A Azinheira Sinaleira pelo grupo de teatro de fantoches Era Uma Vez. Em paralelo este festival integrou também uma oficina de construção de máscaras.
O Teatro ao Largo, nesta produção, afastou-se um pouco do seu objectivo primordial e que presidiu à formação do grupo: “Captar o interesse da pessoa comum pelo teatro”. Quem assistiu ao crescimento deste grupo desde o espectáculo Mirandolina até à Bela e o Monstro, passando pelo mais recente Aqui jaz um poeta dum cabrão verifica que há uma mudança de perspectiva relativamente a esta última produção. Em Doutor Fausto, encenado por Stephen Johnston, já não existem aquelas piscadelas de olho cúmplices ao público, a não ser uma vez ou outra num piada infeliz sobre políticos. Mas aquela relação com a Terra, com a pessoa comum, que fazia do Teatro ao Largo um grupo de excepção está a esbater-se.
A dramatização de Marlowe, da história do homem que vendeu a alma ao diabo em troca da realização de todos os seus desejos durante 24 anos, não é tão conhecida como a versão de Goethe. Rui Penas, interpretando o Doutro Fausto, exagera no tom profundo e teatral. Por outro lado, as actrizes Marina Simões e Filipa Braga Cruz têm um trabalho eclético que surpreende, defendendo registos que vão desde o estereótipo da mulher sensual até à técnica da máscara, às artes circences e mesmo até à visão da mulher-deusa na descida de Helena de Tróia do Olimpo. Mefistófeles, interpretado por Paulo Oliveira também excede o registo sensual, apostando mais na lascívia que propriamente no demoníaco.
O espectáculo tem um início forte, com as criaturas demoníacas a entrarem em cena, provocando o espectador. A solução para integrar os planetas que Fausto estuda está muito bem conseguida, originando um bonito momento cénico do espectáculo. Quando começa a relação de Fausto com Mefistófeles o tom começa a ser sério e o ritmo do espectáculo começa a perder intensidade. Há um momento interessante de comédia quando Fausto se torna invisível mas a ligação com o público já estava longe da cumplicidade habitual com o grupo.
A cena aumenta de intensidade quando os actores recorrem à técnica da máscara, assumindo o estilo da commedia dell’arte . Esta técnica, pelas características que lhe são próprias, obrigou os actores a aumentarem consideravelmente o ritmo de representação. As duas actrizes, sobretudo Marina Simões, destacam-se na desenvoltura e no domínio que têm do corpo. A agilidade com que Marina Simões saltou da cadeira do Papa para a estrutura de metal, subindo por ela acima fingindo ser um macaco, é uma cena surpreendente que destaca bem a versatilidade da actriz.
Os actores permanecem mais num registo que se mantém idêntico ao longo do espectáculo. Foi estranho ver o imperador da Alemanha vestido como um imperador romano, levando o sentido de renascimento ao exagero e induzindo os espectadores a uma certa confusão nas épocas históricas.
Foi bonita a inclusão das ceifeiras no final de Fausto. A sementeira como metáfora de uma esperança que renasce e que anuncia valores essenciais como a Liberdade ou a Justiça. Depois da visão da sementeira Fausto é puxado para o Inferno, depois de ter cumprido os 24 anos de luxúria na sua vida. O efeito especial do actor a cair na sua cadeira para as labaredas das terras infernais, ajudado pelas duas almas demoníacas está bem conseguido, sendo ainda mais intenso o devolver da cadeira ao palco sem o seu ocupante. A cadeira, símbolo do humano, volta vazia, despojada do corpo traído pelo pacto com o diabo.
Este foi um espectáculo com alguns pontos interessantes mas que falhou na concepção do todo. Faltou a habitual relação com o público do interior profundo através de uma linguagem que esse público assume como sua e na qual se reconhece. Desta vez faltou ao Teatro ao Largo o Teatro ao Largo, ou seja, a sua genuinidade, o seu ser singelo que lhe devolvem no mesmo instante a sua beleza.
Uma postura que se pauta pela simplicidade e singeleza não implica necessariamente que se destitua dos seus padrões de qualidade. A qualidade existe nos temas mais simples mas saber mostrá-la desocultando-a, é a tarefa mais difícil.

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