Tuesday, August 14, 2007

Maria João


Maria João parte de um princípio interessante: “Só canto aquilo que sou capaz de mudar”. Essa foi a máxima de que se serviu para escolher o repertório do seu último álbum que revisita a música brasileira. Os compositores eleitos são nomes que vão de Pixinguinha a Edu Lobo, de Chico Buarque a Marisa, de Vinicius de Moraes a Caetano Veloso. O que distingue um simples trabalho de uma obra prima é a transfiguração sofrido pelo efeito do artista, conseguindo, de alguma forma, tocar o espectador através da emoção. O que se passou com o álbum João, acabado de editar, foi que o gosto pessoal de Maria João transformou uma simples homenagem à música brasileira das últimas décadas num monumento orgânico que pulsa em cada segundo que a sua voz pousa sobre uma composição.
Maria João entrou no palco vestida de cores tropicais, convidando-nos a juntar cor à emoção da sua música. Os diálogos da voz com os outros instrumentos mostraram-se inesperados, seguindo ao ritmo da improvisação trabalhada da escola jazzística a que pertence.
Como refere, a música brasileira, apesar de ser fácil de ouvir, não é de fácil composição. E o que o público pôde receber no teatro das Figuras foi toda aquela fluidez colorida característica da música brasileira com o brilho único de Maria João e dos seus músicos. Sobretudo Eleonor Picas na harpa e Mário Delgado na guitarra, incorporaram a voz de Maria João no todo musical.
A par dos 14 temas do novo álbum “João”, a cantora integrou outros temas, mais antigos, compostos por Mário Laginha, que também souberam encantar a audiência daquele espectáculo.
A vibração da sua voz vai do simples sussurro, como em Meu namorado, de Edu Lobo e Chico Buarque, até à assunção plena de uma voz poderosa que percorre todas as escalas possíveis à voz humanas, como no tema Canto de Ossanha, de Baden Powell e Vinícius de Morais. Foi arrepiante ouvir os diversos matizes do verso “…O amor só é bom se doer…”. A canção doía porque pela acção da voz de Maria João, o tema conseguiu entranhar no coração, causando a emoção.
Maria João revelou-se, uma vez mais, uma mulher que sabe estar no palco, quer cantando, quer afastando-se do centro para deixar aos músicos o protagonismo de alguns momentos. Também na apresentação improvisada dos seus músicos soube brindar a plateia com palavras soltas e despretensiosas que divertiram, contribuindo para uma proximidade ainda maior com a cantora.
Dona de uma figura invejável Maria João aos 51 anos ainda fez vibrar durante mais de duas horas uma plateia de cerca de 800 lugares. Com uma maturidade na voz e uma juventude no corpo e na alma, a cantora vai modelando a voz com o corpo, dando-lhe a coloração que pretende. Coloração é a palavra exacta porque é mesmo de sinestesia que se trata, uma vez que conseguimos sentir a cor da música através da sua voz.
O desenho de luz é intenso, ajudando a descobrir as várias tonalidades do concerto. Retrato em Branco e Preto, Partido Alto, Rosa, Escurinha, ou Choro Bandido vão adquirindo diferentes matizes justificando a mestiçagem que lhes subjaz. Apesar de serem músicas que já se elevam a uma categoria universal na sua génese estão influências brasileiras, africanas e portuguesas. Este disco, menos experimentalista, reúne as últimas décadas de música brasileira, condensados em 14 temas que vai ao encontro da alma brasileira: cheia de sol e de cor.
Embora permaneça uma certa saudade da parceria que se completou por mais de uma década com o compositor Mário Laginha, é bastante saudável e renovador recebermos uma Maria João que se lançou a solo com esta qualidade, com este saber, com esta segurança, dando ao público tanto prazer.
É caso para dizer: nunca uma voz voou tão longe e nunca uma música pousou tão perto do coração.

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