Sunday, November 28, 2010

Ao Luar


Máscaras de madeira escondem rostos carregados de trabalho e dor pelo duro trabalho da terra. Uma mulher monda, um homem cava a terra. Os gestos são precisos e a técnica da máscara dá ao corpo uma outra identidade. Os espectadores reconhecem-se naquela realidade rural. As máscaras saem de cena e dão lugar ao actor César Matoso, que canta o amor e o enamoramento por uma camponesa através de um tema popular. É a introdução para a acção, protagonizada por Célia Martins e Rui Penas, que interpretam dois comerciantes donos de uma banca de produtos que fazem parte de um certo imaginário rural. Desde melões e aguardente de medronho até pentes e espuma de barbear, tudo se encontra naquele pequeno reduto de sonhos antigos. Os comerciantes são vizinhos desencantados da vida. Ele é vendedor de produtos agrícolas e viúvo e ela, abandonada por um marido alcoólico, vende os pequenos luxos domésticos a que a população rural podia aspirar. Os seus encontros são desencontros de quem se sente atraído sem o querer dar a entender. Os três fazem parte da Companhia “Ao Luar Teatro”, recém criada em Março com o intuito de chegar às populações mais recônditas e envelhecidas. Neste trabalho a acção passa-se numa pequena população rural que vai vendo a vida passar devagarinho, ao ritmo das flores que crescem na serra e no barrocal.
A conversa entre os vizinhos dá azo a que os espectadores se transformem em potenciais compradores, abrindo-se o espectáculo a uma interacção pacífica e simpática. Os espectadores provam da aguardente, experimentam os perfumes de há 15 anos, seguram nos melões, avaliam os produtos. Os espectadores sorriem, tornam-se cúmplices desta abordagem amável.
Talvez encorajados pelo clima de entusiasmo que se criou junto do público os vizinhos combinam encontrar-se no baile da aldeia. Após alguns desencontros que intensificam o conflito acabam por se encarar, nervosos e aperaltados, pensando cada um para si mesmo que pode ser a última oportunidade de acenar ao amor e de envelhecer ao lado de um ombro amigo. O baile fica animado, sobretudo porque o público é convidado a dançar. O rodopio é tal e a confusão tamanha que as declarações de amor se perdem e dão lugar a um mal entendido que os leva a encetarem caminhos paralelos cujas vidas não se cruzam. As bancas continuam lado a lado mas os corações doridos pela presunção de uma recusa que afinal não passou de um engano.
A calma da vida lenta e pachorrenta é ameaçada por uma ameaça vinda de decisores longínquos. A aldeia de Entre Valados pode desaparecer perante a ameaça da construção de um aeroporto. Mas nem o medo comum aproxima os vizinhos, que vão envelhecendo lado a lado mas sozinhos, cada um em sua banca. Numa noite singular o vendedor de melões tem um sonho revelador pleno de fórmulas e enigmas. Encontra um frasco suspeito que resolve guardar, não vá a vida pregar-lhe mais partidas e ter de partir mais cedo.
Os anos passam e o peso da vida faz-se sentir no peso das costas dos vendedores de ilusões. Olham um para o outro descobrindo as esculturas que o Tempo marcou nos seus rostos, nos seus corpos. A ameaça do aeroporto continua a pairar e a ensombrar as vidas dos habitantes daquele pequeno lugar no seio da serra algarvia. Passaram 20 anos e a vida continua difícil e solitária. O fim aproxima-se e os vizinhos, já que não envelheceram juntos, resolvem experimentar o misterioso líquido encontrado após o enigmático sonho. Depois de o terem ingerido dá-se um milagre e os seus corpos voltam atrás no tempo, recuando aos 20 anos. E como uma segunda oportunidade não pode ser desperdiçada, resolvem acertar as suas vidas e juntar as vendas. O projecto do aeroporto fica sem efeito por questões burocráticas e o final é anunciado através de uma canção que predispõe todos a sair do espectáculo bem-dispostos e com vontade de voltar.
Por Entre Valados, escrito e encenado por Rui Pena, foi um espectáculo rigoroso, honesto, com forte influência da linha do grupo Teatro ao Largo, mas ajustado à realidade da serra Algarve. Um trabalho profissional que une dois actores experientes a um actor recém-formado num curso de formação profissional do Algarve, César Matoso, detentor de uma excelente voz e uma forte presença em palco. Um bom exemplo do serviço que o teatro pode fazer no Algarve.

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