Friday, November 26, 2010

A alma de Lorca


O Teatro da Terra, estrutura recém criada em Ponte de Sôr, trouxe a Loulé, por intermédio da DeVIR, a produção A Casa de Bernarda Alba, de Lorca, encenado por Maria João Luis. Este espectáculo foi apresentado no convento de Stº António, em Loulé, espaço privilegiado para devolver ao espectador as emoções que este texto encerra. O interior da antiga capela do convento foi o cenário ideal para apresentar a casa de Bernarda, uma matriarca fria e tirana, que encerra desumanamente as filhas em casa, em pleno desabrochar sexual. Três carrinhos de linhas gigantes, uma poltrona e seis cadeiras de espaldar alto compõem a cenografia. Pôncia, a criada, as cinco filhas, Bernarda e a sua mãe, conviveram com aquele espaço como se de facto fosse a sua casa. Na segunda parte do espectáculo o público foi conduzido para um claustro em ruínas, que serviu na perfeição para o desenlace da cena final. A Casa de Bernarda Alba é a ultima peça de Frederico Garcia Lorca , escrita em Junho de 1936, ano em que o escritor viria a ser assassinado. Para Maria João Luis, esta história é «uma história aparentemente simples, é, no entanto, um autêntico bilro de intenções e mensagens, onde destaco a violência e a agressividade. Tão humanos que nós somos. Tão capazes de tudo. Uma família fechada, uma sociedade fechada, cheia de padrões. Não vou aqui discuti-los, mas sei que é preciso continuar, tal como Lorca, a analisá-los e, se preciso for, a intervir, usando aquilo de que somos feitos. Este texto fala-nos de violência, opressão, medo, humilhação e consequente revolta e poesia. Não estamos assim tão longe desta realidade escrita em 1936, ano em que o seu autor foi fuzilado. Continuamos como podemos, apesar de todos os dias nos chegarem notícias de violência e opressão. Continuamos como podemos, apesar de todos os dias nos chegarem notícias de violência e opressão. Continuamos como podemos. As palavras são pontes. Tudo o que se transforma a realidade do artista».
Nesta encenação a criada começa a lavar o chão ao som de uma canção de Lorca. Lava-o com raiva, com sofrimento, pondo em cada gesto a carga de um povo com fome. Uma cena tocante que prepara o espectador para o ambiente de violência que se vai seguir. Este texto de Lorca fala-nos de abusos de poder, de opressão, de sofrimento, de luta pela liberdade, de amor e de traição. Cada personagem procura, a sua maneira, a felicidade que lhe é negada por um mundo de tabus e por uma sociedade impregnada de regras. Pôncia, a criada velha, simboliza a ligação entre um mundo onde miserável onde se passa fome e o mundo da burguesia rural abastada, que compra rendas sem lhe dar préstimo. Baseada numa história real, esta peça leva-nos a uma viagem ao sufocante mundo das regras e da discriminação dentro da própria família, exercida por uma mãe tirana. Bernarda, que casou duas vezes, proíbe as filhas de saírem de casa após a morte do seu segundo marido. Jovens à procura de um motivo para se libertarem desta tirania, voltam-se contra a irmã mais velha, filha do primeiro marido de Bernarda que, por ter um dote maior, encontrou um pretendente. Angústias vai finalmente casar, aos 38 anos com o rapaz mais cobiçado da região. Esta decisão cria uma explosão de sentimentos que as actrizes souberam mostrar de uma forma verdadeiramente exemplar. A força de Lorca estava bem patente na representação de cada uma das actrizes com particular destaque para a força de Bernarda, interpretada pela actriz Custódia Gallego, para a sobrevivente Pôncia, interpretada pela actriz Ana Brandão e para a irreverência de Adela, a filha mais nova de Bernarda, interpretada pela actriz Diana Costa e Silva. A violência de Bernarda ajusta-se à violência dos sentimentos que estão oprimidos e prestes a explodir à mais pequena faísca. A faísca é a assunção da paixão de Adela por Pepe Romano, o afastamento deste pela matriarca, que leva ao suicídio da filha mais nova. A última frase da peça “A filha de Bernarda Alba morreu virgem”, mostra bem a submissão de uma sociedade hipócrita à aparência.
Lorca definiu assim o teatro: " 0 teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana. E ao fazer-se, fala e grita, chora e desespera. 0 Teatro necessita que os personagens que apareçam em cena, levem um traje de poesia e ao mesmo tempo que se lhes vejam os ossos, o sangue. Tem de ser tão humanos, tão horrorosamente trágicos e ligados a vida e ao dia com uma forca tal, que mostrem as suas tradições, que se apreciem os seus cheiros e que salgue os lábios toda a valentia das suas palavras cheias de amor ou de asco. 0 Que não pode continuar é a sobrevivência dos personagens dramáticos que hoje sobem aos cenários levados pelas mãos dos seus autores. São personagens ocos, vazios totalmente, aos que apenas é possível ver através do casaco um relógio parado, um osso falso ou uma caca de gato dessas que há nos devaneios." Nesta produção, Maria João Luis e as actrizes do Teatro da Terra cumpriram em Loulé esta definição.

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