Manuel Teixeira Gomes foi o autor homenageado pela ACTA por ocasião do aniversário do centenário da República. O primeiro presidente da República algarvio, homem de cultura acima da média, desempenhou um papel determinante na criação de um Estado de Direito no que se convencionou chamar a Primeira República. Alexandre Honrado, a convite da ACTA, tentou fazer um cruzamento de alguns dos momentos singulares da vida deste homem com excertos da sua obra literária. Momentos em forma de instantâneos que decoraram a vida e a obra do presidente literato. Procurando no livro das Actas do teatro, fornecido pela companhia, não encontramos a referência exacta das obras de que se socorreu Alexandre Honrado para construir o alinhamento dos textos de Teixeira Gomes. Mas a memória das descrições inesquecíveis remetem-nos para páginas do Inventário de Junho, Gente Singular, Novelas Eróticas, Maria Adelaide, Cartas Sem Moral Nenhuma, entre outros. Porém, para quem ainda não despertou para a beleza dos textos de Teixeira Gomes, uma referência directa aos textos incluídos no acerto dramatúrgico de Alexandre Honrado, seria certamente pedagógico, tal como a descrição do processo de descoberta que o dramaturgista fez acerca do autor. Alexandre Honrado focou o seu olhar em instantâneos de um Algarve grotesco, pontuando-o com outras de cariz mais sensual ou outras ainda de feição mais politizada como a referência directa ao discurso de Brito Camacho. Poder-se-ia perguntar porquê a escolha da conversa entre o jovem comerciante de frutos secos na Holanda e o judeu, em detrimento das descrições, ora de uma sensualidade estonteante, ora de uma graça fantástica, retirada do conto “Deus Ex-Machina”, integrado nas Novelas Eróticas, esquecendo a jovem Camila, patinando como criança e descobrindo-se como mulher nos braços do escritor. Ou a descrição do seu desesperado amor com a noiva sevilhana, ameaçado logo desde o início pelo pai desta que o achava indigno da filha por ele não ter “eira, nem beira, nem folha de figueira”. Uma descrição do capricho da menina em detrimento daqueloutra pesada e arrepiante, quando Teixeira Gomes a adivinha num cinema, acompanhada pelo então marido, incapaz de se voltar para trás para a ver, tal era ainda o peso da sua paixão… Poderíamos discutir até ao infinito quais os excertos que nos tirariam o melhor instantâneo deste homem singular.
Uma relação discutível ao nível do trabalho dramatúrgico foi a da assunção textual da personagem Maria Adelaide com a figura real de Belmira das Neves, bem como a evidência da figura de Teixeira Gomes no vilão Ramiro d’Arge. Quem leu o romance Maria Adelaide decerto encontra traços comuns nas suas personagens com Teixeira Gomes e aquela que foi a mãe de suas filhas. No entanto, uma ligação tão directa é abusiva, sobretudo quando no final do romance Ramiro d’Arge confessa ter recebido a notícia da morte de Maria Adelaide com euforia, chegando a saltar de alegria. Para além de não corresponder à verdade, não abona em favor da sensibilidade e da humanidade reconhecidas no escritor. Os romances são construídos com base em vivências, mas por serem uma construção que o escritor faz da realidade, não são a sua realidade enquanto vida mas a sua realidade enquanto criação poética. E retirar o fio que liga Maria Adelaide a Belmira das Neves é retirar a poesia à obra de Teixeira Gomes. E porquê modificar a imagem da despedida do mar, confundindo-a com as cores do rio, desvirtuando desta forma uma das imagens mais tocantes do romance, pois é no momento em que Maria Adelaide pede a Ramiro d’Arge para se despedirem “do nosso mar” que o protagonista do romance começa a olhar para a sua jovem amigada com um deslumbramento que vai para além do desejo puramente carnal, transformando-se nessa altura numa admiração estética. As cores com as quais gostaria de andar vestida são as do rio, pelo sol postinho, mas a ânsia da despedida antes da “viagem” é pelo mar.
Mas se o texto fica aquém de um olhar mais abrangente sobre a figura acutilante e deslumbrante de Teixeira Gomes, a encenação preencheu, de alguma forma, os hiatos deixados pelo texto. Como se estivessem no interior de uma câmara fotográfica gigante, as personagens sucedem-se umas às outras, mostrando a beleza captada do momento num tempo que é efémero. Foi pena não termos sido surpreendidos pelo clarão da explosão das lâmpadas de magnésio, essenciais ao ritual do retrato.
No princípio a República, nua, é adornada com a sua saia vermelha por Teixeira Gomes, como se fosse este presidente o primeiro a descobrir a sua força, a sua beleza, a sua sensualidade. De seguida o passar de testemunho da bandeira do Presidente à jovem República. Mas, se raciocinarmos de forma inversa, é a República que investe o Presidente com a sua bandeira e as suas cores para que ele possa governar o país. É de facto singular a jovem república, que já tinha nascido treze anos antes, receber das mãos de um presidente, a sua bandeira.
Os quadros sucedem-se com a qualidade a que os actores da ACTA já nos habituaram e confluem para um dos momentos altos em que, no silêncio, o corpo da bailarina Ana Filipa Antunes, coreografada por Evgeni Beliaev, irrompe do escuro lançando à multidão a luz da esperança, a luz que o povo faminto e iletrado do primeiro quartel do século XX precisava.
No quadro com Belmira das Neves, o discurso da sofrida mulher foi ilustrado pela imagem em vídeo da deambulação da República pelas arribas da costa algarvia. Este cruzamento leva-nos à questão: terá sido a República para Teixeira Gomes como o deslumbramento que se tem naturalmente por uma jovem que a rotina e o hábito vão destruindo aos poucos? Teixeira Gomes saiu de Portugal após dois anos de mandato na Presidência da República. Dois anos foi o tempo que durou a relação descrita no romance Maria Adelaide, que se iniciou nos segredos do amor aos dezasseis anos. Trocada dois anos mais tarde por uma rapariga de 14 anos, a jovem mulher sucumbiu de amor. Teixeira Gomes pode ter trocado a sua jovem república por um país onde tudo era novo e livre. Saiu de Portugal sem um apontamento ou livro. Nada que o fizesse lembrar o antigo literato ou político. Mas a jovem República não sucumbiu. Quase morreu de desgosto, teve uma crise de 48 anos, mas conseguiu renascer pela vontade de um povo que a amou e a fez sentir de novo jovem e bonita.
O convite feito a um aluno das escolas secundárias por onde o espectáculo irá passar no sentido de ler o texto inicial do espectáculo constitui uma boa estratégia de aproximação com os mais jovens, despertando-os para esta realidade tão próxima mas já tão longínqua da sua memória histórica.
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