Friday, November 26, 2010

A origem da tragédia


Património da Humanidade, classificada pela Unesco, a cidade de Mérida é o palco para o Festival de Teatro Clássico, o maior evento cultural da cidade e de Espanha, entre Julho e Agosto. Ano após ano vemos obras de autores clássicos serem revestidas por encenadores contemporâneos, dando uma nova roupagem aos problemas que com que a humanidade sempre se deparou. A questão académica que se coloca à partida, quando se começa a estudar uma obra de teatro clássico é se a tragédia poderá, em si mesma, conter a essência do pensamento contemporâneo. Quando nos deparamos com as obras de Sófocles, nas quais nos deparamos com uma construção dramatúrgica perfeita, percebemos que as questões essenciais da humanidade estão abordadas nesses textos. Édipo Rei desoculta inúmeros problemas relacionados com a questão da liberdade do Homem, com a sua capacidade de escolher ou não o seu destino, e com a capacidade de se perdoar a si próprio por um crime que cometeu sem uma deliberação intencional. Este tema foi retomado ao longo da história da humanidade, contudo sem a poderosa escrita original que colocou Sófocles na galeria dos imortais. Graças ao seu prestígio, foi tesoureiro da Liga de Delos e estratega ao lado de Péricles. O herói de Sófocles era dotado de uma humanidade irrepreensível e, por isso mesmo, incompreendida pelos outros homens. Os deuses, apesar de serem referidos, pouco interferem na acção da tragédia. A tragédia do rei Édipo confronta o homem com a sua incapacidade perante a força mais poderosa que os gregos acreditavam existir: o destino. Nem os deuses poderiam alterar a força do destino. Édipo tentou lutar contra o seu destino e acabou enredado nas suas malhas, de forma inconsciente, contra a sua própria vontade.
A versão apresentada no Festival Internacional de Mérida é de Jorge Lavelli e de José Ramón Fernandes. Uma visão que segue o texto original pontuando-o com um coro surpreendente, dirigido por Guilhermo González e com figurinos arrojados de Maria Luisa Engel. A encenação não restringe a cena ao espaço do palco. As personagens também desenvolvem o seu trabalho na orquestra, na própria plateia e nas colunas que ornamentam o antiteatro romano. O espectáculo começa com a inquietação do povo, prestando sacrifícios ao deus Apolo pelos tempos de devastação que a cidade está a sofrer: há pestilência, a terra está estéril, os animais não conseguem procriar e aos poucos a cidade está a morrer. Édipo é um rei amado pelo seu povo e este pede-lhe que salve pela segunda vez a cidade. Édipo diz que tudo fará para que a cidade volte a ser próspera e consulta um adivinho para que este lhe diga qual é a razão daquela devastação conjunta. O adivinho permanece diante do soberano e diz-lhe que a cidade está a sofrer porque está por vingar a morte do seu anterior rei: Laio, o primeiro marido de Jocasta. Édipo envida então todos os esforços para encontrar o assassino de Laio e proceder ao seu castigo, pois assim os deuses o exigem. Em confronto com um vidente cego, Tirésias, Édipo é acusado de ter sido ele próprio a assassinar Laio, facto de que não tem consciência. Depois desta terrível revelação o resto da tragédia é um contínuo caminhar para a verdade brutal: Édipo foi abandonado pelos seus próprios pais por causa de um oráculo terrível. Foi encontrado por um pastor que o levou aos seus soberanos de um reino distante, que o criaram como sendo seu filho. Quando quis saber o seu destino, Édipo consultou um oráculo. Confrontado com o seu terrível destino, fugiu para o mais longe que pôde, a fim de se libertar dessa maldição. Anos mais tarde confrontou-se com a consumação do seu destino profetizado mal nascera: tinha de facto matado o seu pai e casado com a sua própria mãe, de quem tinha tido uma descendência amaldiçoada. Laio era o seu pai e Jocasta a sua mãe. O destino estava cumprido. Para não ver mais a realidade que o tinha castigado daquela maneira Édipo vazou os olhou numa atitude de auto-mutilação, banindo-se a si próprio da cidade que o amava. O actor Ernesto Alterio interpreta um Édipo que vive de uma movimentação corporal muito especial. A sua movimentação leva-nos a pensar que se desloca constantemente no arame, procurando um equilíbrio que não tem. Creonte, interpretado por Paco Lahoz e Tirésias, interpretado por Juan Luis Galiardo são os dois sustentáculos deste espectáculo, oferencendo ao público uma belíssima visão de representação clássica. Creonte aparece como um general fiel, que detém o poder mesmo não exercendo o cargo de rei. Tirésias surge na cena preso numa camisa-de-forças, simbolizando o medo que os homens têm de ouvir a verdade, acusando-os amiúde de loucura. Curiosamente, desde a antiguidade clássica que os detentores da verdade são cegos, pois estes conseguem ver a essência do real para além das aparências. O coro, constituído por 15 elementos, é o elemento de destaque deste espectáculo. Aparece amarrado, conduzido pelo corifeu, simbolizando o senso comum. Este conjunto produz sonoridades surpreendentes, perfeitamente harmónicas, contrastando com o caos que acontece em cena. A sua movimentação em cena também é coreografada de forma harmónica, constituindo assim momentos essenciais para o equilíbrio da tragédia. Jocasta, interpretada por Carme Elias, tem uma movimentação estranha, condicente com a negação da realidade que está a antecipar. Ela mantém uma relação de cumplicidade muito próxima com o marido, recusando-se a aceitá-lo como seu filho. A aceitação desta verdade coincide com a sua recusa, obrigando-a ao suicídio.
Este espectáculo tem, ainda no século XXI, um efeito devastador. Apesar de já sabermos a história, estamos ali até ao último minuto na esperança de que Édipo siga o conselho de Jocasta e não procure escavar nas entranhas da verdade, ou que os pastores que trocaram a criança abandonada entre si já não estejam vivos, ou que Tirésias se cale e não revele o que sabe. Esperamos até ao último minuto que a verdade não se revele cruel e sofremos com Édipo e com Jocasta o castigo da revelação. É o momento da expiação e apiedamo-nos das personagens que sofreram tão cruel destino. Está cumprido o objectivo da tragédia: a nossa própria purificação.

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