Friday, November 26, 2010

Vidas de cristal


Jardim Zoológico de Cristal, de Tennessee Williams, encenado por Nuno Cardoso, foi o espectáculo apresentado no dia 30 de Janeiro no Teatro das Figuras. Tennessee Williams admitiu que um dia se apercebeu de que a vida de um escritor iria ser algo de semelhante à defesa de um forte contra um bando de selvagens. Este escritor, que se declarava basicamente um humanista, escreveu com a dureza de alguém que atravessou a grande depressão e cuja vida foi semelhante, segundo as suas palavras, a um “caleidoscópio vertiginoso”. Escrevia continuamente porque não conseguia outro meio de expressar coisas que pareciam exigir expressão. E foi de um homem com uma vivência difícil que surgiu um texto cru que o levou à ribalta, como Jardim Zoológico de Cristal. O texto mostra o quotidiano exíguo de uma família disfuncional, reduzida a uma mãe que foi obrigada a criar dois filhos sozinha. O peso da tradição da América sulista dos anos 40 marca o dia-a-dia daquelas três pessoas que se sufocam mutuamente num emaranhado de culpas, enganos e recriminações. A mãe, uma Sulista assumida e determinada, vive suspensa nas brumas de um passado que teima em fazer presente. Assume para a sua filha Laura o mesmo tipo de comportamentos que havia tido na mocidade, quando a casa se enchia de pretendentes. Laura, vítima de uma pequena deformidade na perna, não tem pretendentes para receber e passa as tardes a divagar pelos museus, fruto da sua fobia ao curso de contabilidade. Tom, o filho, trabalha num armazém para sustentar a família. Mas o seu sonho é correr mundo e seguir as pisadas do pai que fugiu daquele mundo pequeno e demente. Tom assume neste texto o papel de observador que sai da situação e comenta a cena, voltando a entrar quando a família acorda para a sua realidade. A encenação de Nuno Cardoso consegue transmitir ao espectador a sensação de sufoco através da cenografia. Um rectângulo que recria um apartamento no meio de uma cena completamente escura permite a imagem de uma vivência oprimida, não só pelo espaço, mas sobretudo pela pressão das obrigações familiares. Nuno Cardoso coloca os actores na cena numa situação de suspensão, como se de manequins se tratassem. É uma suspensão da vida que se recusam a viver em prol de um destino no qual acreditam ter de obedecer.
A luz de José Álvaro Correia transmite para além da ambiência, os estados de espírito das personagens. Há uma luz na manhã que invade a cena em paralelo com a esperança que a mãe devota ao dia e ao futuro dos seus filhos. Belíssima, acompanha todos os matizes e cambiantes do dia, detendo-se na evocação final de Tom, com a sua figura fora do apartamento sufocante, iluminado e olhando para o seu passado na obscuridade.
Laura, a filha, subjugada por uma mãe dominadora, sofre de ataques de pânico e sucumbe nas ocasiões mais críticas. Desiste de viver a sua própria vida, dedicando-se à sua colecção de peças de cristal. Uma colecção de vários animais que exigem uma atenção meticulosa. Tom vive numa opressão constante, com alma de poeta e mãos de operário. É forçado pela mãe a permanecer em casa enquanto a irmã não conseguir a sua independência. Tom vive infeliz, ansiando por uma vida que seja sua. Num derradeiro favor à mãe leva a sua casa um colega do armazém a fim de o apresentar à sua irmã. A mãe começa a sonhar com a sua própria libertação, enfeitando a casa e a filha. Laura reconhece o amigo do irmão como o único rapaz por quem esteve apaixonada. Fica em pânico e quando tudo se supera – a timidez, o pânico, a vergonha de ser coxa – e Jim a convida para dançar, beijando-a com ternura, revela-lhe que está noivo e que não pode voltar a vê-la. O mundo de Laura desaba e a vida volta ao que era dantes. Mais dura, porque Tom seguiu o seu sonho, saindo de casa. Com mais cor, porque também Laura conseguiu continuar a ver a vida através de cristais.
Nesta encenação os actores Maria do Céu Ribeiro, Micaela Cardoso, Luís Araújo e Romeu Costa entregaram ao trabalho um realismo dramático com uma qualidade que tocou os espectadores. Os momentos de suspensão estavam colocados em pontos estratégicos de tal modo que cada um era um esboço que servia para ornamentar a vida do outro. Tudo se conjugava numa ética de deveres que foi rasgada abruptamente pela fuga de Tom, o narrador da história.
Uma história de uma crueza desconcertante que provoca um sentimento de solidariedade pelo outro e, estranhamente, de simpatia pelo anti-herói que despoletou a tragédia da história. Um espectáculo verdadeiramente brilhante.

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