Friday, November 26, 2010
Cal
Nos dias cinco e seis de Fevereiro o Teatro da Terra trouxe ao Centro de Artes performativas do Algarve o espectáculo Cal, a partir da obra homónima de José Luis Peixoto. Cal é um espectáculo sobre a velhice. A cristalização de um tempo que se assemelha à passagem da cal através dos anos, protegendo o interior do exterior agreste. José Luis Peixoto fala-nos, nesta obra, sobre as revelações que os velhos conseguem transmitir. Com admite o autor, “de certo modo, quis preservar, através da escrita ficcional, a dignidade das pessoas que me fizeram ter consciência de que a velhice não é só uma questão de decadência física. Às vezes é também o exacto contrário disso.”
O espectáculo encenado por Maria João Luis e Gonçalo Amorim apoia-se numa estética simbólica que joga com a imagem dos próprios actores projectada num ecrã gigante. A velha Carlota deixa correr uma lágrima perante a inutilidade da sua vida. Depois de dado o mote, Maria João Luis e Gonçalo Amorim ausentam-se do palco dando lugar às imagens que se vão sucedendo no filme que suporta o espectáculo. Maria João Luis dá corpo e voz a uma velha que teimosamente luta contra o tempo que lhe vai curvando as costas. Vai à vila vender a burra, da qual se despede com carinho, senta-se debaixo da árvore, vendo o tempo passar. O Tempo permite-lhe ver o anjo que a acompanha. Maria João Luis rompe a cena trazendo pedaços do ser da vida de Ana, ou de Carlota. O bonsai, o feixe de lenha, o pequeno banco de madeira que suporta as batatas, o cajado que suporta o peso da vida. Há uma intromissão do actor na projecção e uma invasão do filme na figura do actor. A contaminação passa a fazer parte integrante do espectáculo e o espectador passa a fazer parte integrante dos dois suportes artísticos que dão vida às personagens de José Luis Peixoto. Para o autor, a inspiração para o seu livro “não foi só a identificação com o Alentejo, não foi só a brancura, não foi só a ideia de uma espécie de cristalização das casas, que as conserva e as paralisa no tempo. Foi também a noção de que a cal é uma matéria perigosa, uma pedra que ao colocar-se dentro de água ferve, queima e se cai nos olhos, cega.”
A interpretação de Maria João Luis é consistente, como nos tem habituado ao longo do seu percurso artístico. Em palco podemos recriar as marcas do tempo que a projecção no vídeo nos mostra de uma forma evidente, como se de um mapa se tratasse. Mas quando o público está perante a actriz a sua atitude, o seu modo de mostrar o corpo e a voz ultrapassam qualquer artifício de caracterização porque se apresenta como verosímil. E porque a presença de Maria João Luis é tão consistente, sentiu-se uma saudade ao longo do espectáculo da sua presença física, mesmo quando estávamos perante um grande plano de Ana, a velha solitária que consegue ver o anjo que a acompanha.
O terceiro acto é suportado por um texto pobre, redundante, que não faz jus à escrita autêntica e sensitiva de José Luis Peixoto. “O homem que está sentado à porta” insiste na evocação recorrente do autor enquanto personagem da própria história na memória do velho. Talvez nessa história houvesse a curiosidade de nos confrontarmos com a imagem real do velho Durico, uma das fontes inspiradoras do texto. Para Gonçalo Luz, “a idade traz consigo a revelação da consciência de nós e a dignidade de uma certa sabedoria.” Este trabalho reconduz o olhar do espectador para a consciência da própria vida. Como se pode ler a páginas tantas no livro de José Luis Peixoto, "Havia momentos em que achava que não havia momento nenhum da sua vida fora da prisão em que não tivesse pensado duas vezes desde que entrara na prisão. Passava as noites deitado, a ver um quadrado negro na janela e a esperar. Às vezes, havia uma estrela que brilhava dentro daquele quadrado. Ele acreditava que, se pudesse ver o céu inteiro, conseguiria sempre distinguir aquela estrela. Nascia o dia e depois voltava a noite."
A consciência da perpetuidade. A consciência, também para nós de que, como nos recorda José Luis Peixoto, “quando morre um velho desaparece uma biblioteca”. E leva consigo uma memória branca e carregada. Como a cal.
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