Friday, November 26, 2010
Desassossego na comuna
Fernando Pessoa escreveu, João mota encenou, Carlos Paulo interpretou. A obra nasceu. Bernardo Soares, o heterónimo mais próximo de Pessoa anuncia: “Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto."
Inteiramente baseado no “Livro do Desassossego” de Bernardo Soares/Fernando Pessoa, Desassossego é um espectáculo de teatro, interpretado pelo actor Carlos Paulo e pelo músico Hugo Franco, que desperta no espectador emoções díspares.
Fernando Pessoa, ele próprio, será o músico, sem palavras, mas que através da execução musical de temas originais e, recorrendo aos mais variados instrumentos, preencherá silêncios, anunciará as mudanças marcará os ritmos - maestro por excelência – dos seus heterónimos. Carlos Paulo interpretou seis personagens que compõem o imenso caleidoscópio de vivências que “O Livro do Desassossego” propõe; O Escriturário, A Criança, O Mendigo, O Palestrante, Homem/Mulher, Revoltado. Dono de uma extraordinária presença em palco, Carlos Paulo convida-nos a fazer uma reflexão sobre um século que acabou e que teve em Fernando Pessoa um dos maiores expoentes, pela clareza, a inteligência, a frieza com que soube interrogar e interrogar-nos: no fundo, o Desassossego Português através da palavra do maior poeta da língua portuguesa do século que findou. Terrivelmente individualista, por vezes dolorosamente individualista, cenário pregado nas paredes de papel, de um homem que sofre e se lamenta poeticamente no escuro da sua sala abandonada de quarto alugado, o LD é em rigor a grande peça de teatro em monólogo sussurrado de uma alma que nunca se dá a conhecer no seu intimo
No cenário, o músico Hugo Franco está sentado dentro do quadro de Almada, escrevendo na mesa da brasileira, lendo em voz alta o que os seus pensamentos vão construindo. E escreve, sempre. E não deixa de dizer: "Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior."
Na personagem do escriturário Carlos Paulo, acompanhado pelas sonoridades criadas ao vivo por Hugo Franco, chama-nos a atenção para a necessidade da banalidade da vida, elemento fundamental que repõe o equilíbrio de todo um mundo de escriturários banais e necessários. Todos com um patrão, também ele simples e banal: "Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.
E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução."
A cena em que Carlos Paulo interpreta a criança, órfã da vida, balançando-se constantemente, acompanhado por uma canção de embalar, é tocante. A elevação da plataforma que simboliza a cama contribui para a elevação do sentimento de perda perante a imensidão do mundo.
Quando Carlos Paulo interpreta o palestrante, com os seus “Conselhos às mal-casadas”, provoca um corte na acção do espectáculo, essencial para a construção do desassossego que lhe está inerente. Mas uma das cenas chave deste espectáculo é o quadro Homem/Mulher, que provoca a dualidade que existe em cada um de nós. O figurino. Composto por um vestido de cauda rosa-choque, que o actor exibe quando está de costas para o público, transforma-se em fato preto masculino quando este se vira de frente para a audiência. A enquadrar essa personagem ambígua estão dois espelhos que marcam o paradoxo do sentimento masculino/feminino no andrógino que existe em cada um de nós e que nos cria o desassossego inultrapassável perante a vida: “Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. É todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da lua emerge numa brancura eléctrica parada, recortado a longínquo e a insensível.”
Por fim, o revoltado revela o desígnio a que está votado: o de ser o poeta visionário que antecipa a missão incómoda de anunciar o futuro. “Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.” Uma digna e brilhante homenagem ao poeta maior da língua portuguesa.
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