Friday, November 26, 2010
A coragem de ser Medeia
Desde que em 1933 a actriz catalã Margarita Xirgu protagonizou ‘Medeia’ sobre as pedras nuas do Teatro Romano, muitos foram os criadores, encenadores, actores e actrizes, cenógrafos, figurinistas que deixaram a sua marca de fogo nos cerca de 75 mil espectadores através das suas interpretações contemporâneas dos textos que autores como Sófocles, Esquilo, Eurípides e Séneca, entre outros, escreveram há mais de dos mil anos.
Este ano Medeia foi encenada em exclusivo para este Festival pelo esloveno Tomaz Pandur e interpretada pela actriz Blanca Portillo. Dizem que Blanca Portillo, uma figura de destaque do teatro em Espanha, possui o instinto necessário a uma actriz que interpreta tragédias. A sua prestação em Mérida na estreia do espectáculo Medeia confirmou, não só o instinto, mas a maturidade e o saber que uma actriz tem de possuir para poder interpretar Medeia.
O espectáculo começa com uma série de figuras espalhadas pelo anfiteatro, que simbolizam jornalistas com figurinos e a atitude de jornalistas dos anos 50, esperando a chegada de uma mulher. Essa mulher é Medeia que, com um lenço na cabeça e uma mala de viagem regressa à sua terra de origem. Mal a vislumbram os jornalistas descem a correr as escadas do anfiteatro, sufocando-a com as suas perguntas. Medeia responde que decidiu regressar após 3000 anos e que quer repor a verdade da história. Retira-se, fatigada e os jornalistas começam, em várias línguas, a relatar o regresso de tão inusitada personagem. Deixam a cena, não sem antes desocultarem o centauro Quíron, que se escondia por detrás de um painel composto por fardos de palha. Asier Etxeandía, que interpretou o centauro, apesar de se libertado do corpo do cavalo, conservou de tal maneira o porte da figura mitológica que o público reconhecia o centauro de cada vez que o actor falava, andava ou corria pela cena. Uma brilhante prestação neste espectáculo. Entretanto entram oito homens armados de forquilhas para juntar a palha que está espalhada ao longo de toda a cena. Os rapazes, simbolizando os argonautas, estão vestidos como camponeses do princípio do século XX. O seu trabalho na terra é animado pelo canto e pelos acordeões das raparigas da Cólquida. E nesta altura desenha-se uma das cenas mais bonitas do espectáculo: depois de um dia de intenso trabalho físico, os rapazes juntam-se às raparigas e lavam-se, despindo-se completamente do tronco para cima. Medeia entra no meio daquele ritual de purificação e os bailarinos vão criando figuras de estátuas que acompanham o diálogo de Medeia com a ama. As camisas encharcadas de água complementam o efeito da coreografia e, perante uma marcação sincopada e sincronizada, as dezasseis figuras criam um efeito plástico admirável. Medeia entra com os trajes tradicionais da Cólquida para logo os despir, ficando com um simples vestido preto evidenciando as tatuagens que a denunciam como feiticeira. Medeia fica só em cena para logo a seguir ser condenada pelo rei Creonte ao exílio, juntamente com os seus filhos, para que a sua filha possa casar com Jasão sem ter a sombra da mulher traída a pairar sobre si. Os guardas, acompanhados de pastores alemães, cruzam a cena várias vezes, simbolizando marés de violência. Medeia pede mais um dia na sua pátria. Creonte, incauto, condescende. Nesse tempo de espera Medeia vai dedicar-se a conceber o seu plano de vingança. Nesse dia Medeia retoma os passos quotidianos que foi a sua vida com Jasão. No espaço da orquestra Tomaz Pandur recria um labirinto, constituído de fardos de palha, dentro do qual Medeia executa as tarefas de casa. Lava a roupa, estende-a, bate ovos para o jantar, refresca-se numa bacia enquanto Jasão goza a sua última noite em casa ouvindo música e bebendo uma cerveja refastelado num sofá. Medeia discute com Jasão, argumentando que deixou tudo por ele, matando o seu pai e o seu irmão, dando-lhe filhos, dedicando-se inteiramente a ele. Jasão responde que isso está tudo certo mas que ela so o fez por amor a si, Jasão. E em nome desse amor deveria aceitar o sacrifício que ele estava disposto a fazer, casado com a filha do rei, dando oportunidade a que os seus filhos possam ter um futuro promissor. Medeia não aceita esta visão da realidade e torna-se violenta, agredindo Jasão. Jasão continua a afirmar que é dela que continua a gostar mas que tem de se submeter a este casamento. Esta cena é toda feita num ritmo alucinante, dentro do labirinto do quotidiano criado, com a violência e a crueza de um casal que partilha o espaço há vários anos. Uma força e uma verdade memoráveis. Jasão parte e Medeia fica sozinha no barco que antes era navegado pelos dois. Agarra-se à imensa vela preta suspensa de um enorme balão de hélio, simbolizando não só a vela mas também o cordão umbilical que a liga aos filhos. E é nesse núcleo que Medeia congemina a sua vingança. Primeiro irá assassinar a futura esposa de Jasão. Depois, matará com as suas próprias mãos os seus filhos. Desesperada, Medeia corre para a estrada. Intercepta um Peugeot 404 dos anos 50 que entrou no palco. Nele segue o Rei de Atenas. Conta-lhe como foi desprezada por Jasão e pede-lhe auxílio. Numa cena de muito erotismo e ousadia, Medeia obtém o juramento do Rei de Atenas, perante as divindades da Terra e do Sol, que lhe dará asilo em Atenas. O carro sai de cena levando levando consigo o charme escondido do rei de Atenas. Jasão segue para o casamento, aceitando incauto o presente de Medeia como prova de arrependimento pela sua discussão e egoísmo. Mas no meio da coreografia, que recriou as danças tradicionais das Balcãs, a jovem esposa começa manchar o seu fantástico vestido de noiva com o sangue da vingança de Medeia. As danças param e Jasão fica enlouquecido de dor. Na cena seguinte o coro grego é composto por oito raparigas, envergando elegantes vestidos brancos dos anos 50, entram conduzindo carrinhos de bebé. A ama antecipa a desgraça enquanto as jovens mães olham para Medeia que, vestida de vermelho, entra em cena conduzindo os seus filhos. Leva-os para o gineceu e, de uma forma simbólica, vestido-os com peles de ovelha, lança-os para fora de cena, onde estão os animais selvagens. Há uma dança tradicional das Balcãs executada por homens que envergam peles de ovelha quando Jasão é confrontado com a morte dos filhos. Desesperado, abandona-se no meio da estrada. Medeia passa, não no carro do Sol, como diz o texto de Eurípedes, mas no atrelado de uma roulotte conduzida pelo rei de Atenas. O centauro Quíron, educador e transmissor dos grandes valores espirituais do respeito entre os seres, sucumbe perante a notícia da morte da princesa e da profecia da morte dos filhos de Medeia. As notícias, anunciadas ao som de uma máquina de escrever, disparam sobre ele como as flechas envenenadas que o feriram infligindo-lhe sofrimentos perpétuos. Perante tais actos Quíron desiste de viver.
Medeia leva na roulotte os filhos mortos e nega a Jasão uma última despedida. Ri-se dele, ciente do poder da sua vingança. Conseguiu o seu intento e vai erigir um templo em sua honra, onde se entoem cantos, simbolizado na cena final onde Medeia entra com os filhos e, ternamente faz um piquenique com eles, serve-lhes abnegadamente uma refeição e canta-lhes uma canção de embalar. E afinal, onde se esconde a verdade de uma história contada há mais de 3000 anos?
Mais que a história trágica e sangrenta de Medeia Tomaz Pandur trouxe a Mérida o fogo de um espectáculo grandioso onde os cânticos entoados pelas mulheres ao som de acordeão, as coreografias executadas por excelentes bailarinos e o peso do quotidiano destruidor que se impôs entre Medeia e Jasão criaram uma obra-prima. Uma utilização brilhante do som da trovoada que assola a tragédia, ecoando em todo o anfiteatro. Uma obra-prima que lavou em lágrimas o público de Mérida. Um abalo como só as obras dos grandes clássicos conseguem provocar. Uma metáfora em que se discute o papel da liberdade e do poder maternal. Um espectáculo que os amantes da cultura clássica não podem perder. Teve na ficha técnica alguns dos nomes mais sonantes a nível mundial. Para além da encenação de Tomaz Pandur, aclamado várias vezes em festivais internacionais de teatro, contou ainda com a dramaturgia de Tomaz Pandur, Darko Lukic y Livia Pandur, cenografia de Sven Jonke (Numen), figurinos de Angelina Atlagic, coreografia de Ronald Savkovic, música de Boris Benko y Primoz Hladnik (Silence), desenho de luz de Juan Gómez Cornejo e sonoplastia de Mariano García.
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