Friday, November 26, 2010

Revisitando a cantora


Ionesco reflectiu sobre o problema da comunicação. A compreensão que está para além da palavra dita. Duval Pestana, nos dias 3 e 4 de Julho fez uma adaptação do texto A Cantora Careca, fábula da dificuldade de comunicação e introduziu um coro grego armado de um computador portátil.
O espectáculo começa com um texto em voz off sobre o problema da meta linguagem. Ao centro está um computador que domina a cena. Depois da voz integrar o espectador na cena um coro a duas vozes, descendo a escada da plateia até ao palco, cantando uma mnemónica para crianças. Instalam-se numa plataforma mais elevada que lhes permite fixarem-se como observadores da cena. Cada elemento do coro tem uma máscara neutra. Assim que se sentaram nas cadeiras que lhes estavam atribuídas retiraram a máscara e ligaram os computadores portáteis. Metáfora da máscara contemporânea, tanto ao nível linguístico como ao nível da imagem pessoal.
A luz transmuta-se e a acção passa para o casal do senhor e da senhora Smith. Nesse momento o diálogo começa criando um sentimento de absurdo entre a sua comunicação. Cada um tem o seu portátil e fala ao mesmo tempo que escreve. Tocam à porta e o casal retira-se para receber condignamente os convidados. A criada integra-os no território do casal Smith. Na sala de estar começam, através da linguagem ficam com a ilusão de que se conhecem. Igualmente com um computador portátil, conversam digitando o texto, com o olhar vítreo pousado no ecrã. Viajaram no mesmo compartimento de comboio, habitam a mesma residencial e dormem na mesma cama. Chegam à conclusão de que são casados quando referem a filha Alice que tem um olho branco e o outro vermelho. Chegam à conclusão de que são Donald e Elisabeth. A criada, que aparece em cena sem máscara nem portátil, vem a cena e explica que não houve um cuidado na especificação da linguagem. As cores dos olhos de cada filha estavam trocadas. Logo, o casal não é o mesmo. E aqui se começa a cair nas armadilhas da linguagem e dos meandros da lógica.
Quando os dois casais se encontram a relação da realidade com a linguagem formal intensifica o lado absurdo do texto. Os quatro utilizam computador portátil. Tocam à porta, a senhora Smith vai abrir e não é ninguém. A cena repete-se até à quarta vez, que é o comandante dos bombeiros. A conclusão lógica a retirar desta cena é que quando a campainha toca, nunca está ninguém do outro lado. Só à quarta vez é que está alguém do outro lado da porta. O bombeiro entra e começam a contar histórias caricatas até à entrada da criada, onde se chega à conclusão de que ela e o bombeiro se conhecem intimamente. Sem máscaras nem subterfúgios. Saem de cena, deixando os dois casais sozinhos e entregues a si próprios e aos seus portáteis. O espectáculo termina com a famosa frase que dá o título à peça: “E a cantora careca? – Continua a usar o mesmo penteado”.
Este espectáculo teve a possibilidade de ser apresentado com as condições ideais. Uma luz belíssima, que mudava de acordo com as alterações do discurso, uma cenografia que acentuava a função de observador do coro, figurinos feitos à medida dos actores, suporte musical que evoca o título do espectáculo. Se a todos estes atributos Duval Pestana tivesse podido juntar bons actores, teria sido certamente um excelente espectáculo. Os jovens actores ainda não têm um domínio da língua portuguesa para defenderem este texto como Ionesco merece. Há problemas de dicção, de projecção, de terminação das palavras na vogal correcta. Este é um trabalho que ao nível da encenação está profissional mas ao nível dos actores ainda se encontra muito incipiente. O público jovem, muito indisciplinado, divertia-se enviando mensagens pelo telemóvel e conversando distraidamente sobre as suas vidas em geral. Esta é a armadilha dos espectáculos com entrada gratuita. Assim não se educa o público a valorizar o produto cultural. De qualquer forma, perpassa sempre invisível a sombra acutilante da cantora careca.

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