Friday, November 26, 2010

O marinheiro


O Grupo de Teatro Penedo Grande, de S. Bartolomeu de Messines, levou à cena o espectáculo O Marinheiro, a partir do texto de Fernando Pessoa. Depois de uma digressão pelos Açores o grupo de Messines actuou no Pátio B@r, em Faro. Dirigidas por Rui Cabrita, as três veladoras foram interpretadas por Célia Ginó, Lisete Martins e Martas Vargas. Num ambiente intimista, muito próximas do público, a três actrizes reinventaram a escrita de Pessoa descobrindo-a na emoção dos seus corpos, para depois a devolver ao público carregada de um outro simbolismo. Pessoa escreveu um drama estático, num ambiente de imobilidade e irrealidade no qual se recusa a realidade, lançando a ponte para um universo onírico. Na leitura dramatúrgica de Rui Cabrita a imagem estática das veladoras transfigura-se no desassossego das suas almas, dando corpo à inquietude e à necessidade de partilhar as suas vozes interiores. O caixão com a donzela de branco foi substituído por um manequim suspenso, de vestido branco, que se impõe na cena. A iluminação, própria de um velório, é quase circunscrita a velas e a uma intensidade luminosa muito reduzida, por parte dos projectores. Como recurso que vai provocar um distanciamento Rui Cabrita utilizou uma gravação em filme onde se via um marinheiro sufocando a ansiedade no fundo da sua banheira. Sufocando sob o peso da morte que deixou na ilha perdida. Rui Cabrita, à semelhança do poeta-dramaturgo, é o marinheiro que se perdeu numa ilha longínqua. Uma perda que resulta da fragmentação de uma identidade que, à semelhança da ilha, é perdida. Uma fragmentação que, à semelhança de um espelho partido, reflecte as imagens repartidas dos heterónimos convertidos em veladoras. As veladoras, fiéis ao texto de Pessoa criaram uma autêntica hermenêutica do corpo à medida que o poema dramático ia avançando. À pergunta “Quem é que eu estou falando?... Quem é que está falando com a minha voz?...” o corpo responde envolvendo-se no espaço num bailado singular. A introspecção intensa transmuta-se numa expressão corporal singular que aproxima a palavra ao corpo do espectador. A fuga da palavra desemboca no encontro do corpo. “É belo falar do passado. Porque é inútil e faz tanta pena.” E se a boca cala o presente o corpo avança para o futuro. Principalmente o corpo de Marta Vargas que descobre todos os recantos do pequeno espaço de representação e, à semelhança das ondas do mar que diz ter sonhado, ondeia e irrompe expressivo quando diz: “Há ondas na minha alma... Quando ando embalo-me.”
É sobretudo tocante sentir a emoção destas três mulheres quando partilham o texto e o corpo com os espectadores. No final, quando assumem o vestido branco idêntico ao da jovem donzela que estão a velar mostram o desespero da paralaxe ontológica ao mesmo tempo que gritam: “Estou a ouvir-me gritar dentro de mim mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta.”
Lisete Martins está imponente neste trabalho, Marta Vargas impressiona como actriz na alma e no corpo e Célia Ginó é corente no seu trabalho de veladora mais circunspecta mas não menos implacável.
Um momento tocante que desoculta três actrizes algarvias e faz justiça às palavras do poeta. Um trabalho intenso e não menos belo em que Rui Cabrita partilha com o seu público fragmentos da sua alma. Como partilha nas notas de encenação: “Caído o corpo negro a alma aclara-se com igual trajar de branco. Musa tão triste e tão vida charco da memória da água... da vida da árvore afogada de pé sem tempo da morte do passado e do tempo a água só. Induzida na memória pelo som da banheira, o marinheiro na banheira o marinheiro continuando a sua viagem sem porto deixando uma mulher morta vivendo em sua memória de noite uma imagem projectada na água e nos montes do pensamento uma alma consciente da morte do fim de algo, uma mulher que vai descobrindo com o fluir de um sonho a ausência do real uma cabeça que nunca perceberá porque não há relógio nesta noite três corpos dessa mulher que se queda no fim morta num vestido branco suspensa que lhe faz lembrar ela ao marinheiro que sai da saia quando outro dia raia de manhã numa praia de um duche liquidifica-memórias ele parte no ir partindo na procura comum do pão da vida que resta.”
Um espectáculo que merece ser revisto num espaço mais adequado à prática do teatro.

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