Friday, November 26, 2010

O dia dos Prodígios


O público entra na sala principal do Teatro da Trindade e depara-se com um cenário que se impõe pela sua simplicidade e beleza, sem ser ostensivo. Uma plataforma que eleva a cena composta por tapetes, uma árvore típica do barrocal algarvio, ramos suspensos, uma janela que domina o olhar, uma carrinha escondida num canavial. De repente o palco enche-se de corpos que vão compondo a cena. Carlos Paulo, Cristina Cavalinhos, Diogo Morgado, Elisa Lisboa, Filomena Cautela, Hugo Franco, José Martins, Lucinda Loureiro, Luís Lucas, Maria Emília Correia, Maria Ana Filipe, Rogério Vieira e Teresa Faria levam consigo adereços que vestem a cena, compondo-a de um Algarve profundo e isolado do resto do mundo. Vilamaninhos é o lugar onde decorre a acção, descrita magistralmente por Lídia Jorge, na sua obra O Dia dos Prodígios. Com a poesia que caracteriza as suas descrições, a Carminho de Lídia Jorge é transposta para a cena por Filomena Cautela, fazendo lembrar uma figura de Lorca. Uma rapariga bela, filha de mãe solteira, que atrai o seu soldado através do seu cheiro. Lava as janelas, numa imagem belíssima, que causa a inveja das outras mulheres da aldeia. Por entre os ritmos do quotidiano a má-língua impera. E por entre os diálogos criados entre as personagens percebe-se a história de um Portugal triste, iletrado, com as mágoas da Primeira Grande Guerra e as feridas da Guerra Colonial. Carminha é madrinha de guerra de um soldado que a descobre por entre os cheiros doces das plantas aromáticas do barrocal algarvio de carrasco e tomilho. As duas mulheres, isoladas da aldeia no cimo do monte, não assistem ao prodígio protagonizado por Jesuína Palha. O prodígio que foi uma cobra ganhar asas e levantar voo deixou toda a aldeia presa no feito, deixando os desaguisados para segundo plano. A vida continua na sua lenta passagem pelos dias marcados pela lida das mulheres. Pelo bordado de Branca, que borda uma colcha com um dragão para entreter os dias e esconder dos vizinhos os dedos de Pássaro Volante marcados na sua cara. Mas como ela mesma descobre, "Ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se". A memória da Guerra colonial revela-se mais cruel quando a mãe de Carminha descobre numa folha de jornal a notícia da morte do formoso soldado, afilhado de guerra da sua filha. Os tempos difíceis levaram todos os filhos de Teresa e José Júnior a ganhar a vida para fora do país. A aldeia fica quase despida de gente jovem. A mula de Pássaro Volante foge, Macário toca e suspira de amor por Carminha, que não consegue deixar de pensar no seu soldado, a taberna recebe os mesmos homens que contam as mesmas histórias. Até que um dia um soldado irrompe pela aldeia anunciando uma revolução e o fim da guerra. A aldeia continua a cismar no seu prodígio, não percebendo o que as novas do soldado lhe pode trazer. E continua a viver atrás do tempo, tomando como mote a expressão: “Ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se”. Branca conseguiu libertar-se através do seu dom de vidente e Carminha desistiu de si, casando com Macário, depois deste a ter atacado. Esta obra é um retrato desapiedado da ilusão que foi a euforia da revolução. Da crença no esclarecimento global criado por decreto ou por osmose.
O espectáculo teve um excelente leque de actores que contribuiu para uma revisitação mais próxima de um Algarve profundo, ainda desconhecido do resto do país. Uma homenagem às populações que vivem o isolamento a que são votadas nos locais mais inóspitos e a uma escritora consagrada que sempre soube imprimir poesia na situação mais crua: Lídia Jorge.
A acção decorre em Vilamaninhos, interior algarvio, não muito longe do mar, entre o Verão 1973 e a Primavera de 1974. Estamos no Portugal da guerra colonial: há uma madrinha de guerra e um soldado. Mas ecoam memórias da primeira guerra mundial e da implantação da república, e as pessoas desta pequena comunidade, que a emigração reduziu, parecem viver à margem do tempo, ocupadas em reviver o passado, presas em preconceitos ancestrais e conflitos caseiros. Até ao dia dos prodígios, o dia em que a aldeia vê uma serpente a voar...
Com a ironia deste texto de Lídia Jorge, muito próximo do realismo mágico, o espectáculo glosa as contradições tradicionais que estruturam e esclererosam o imaginário português.

1 comment:

Untitled said...

Gosto do texto escrito à volta da peça escrita pela Lidia Jorge, mas não concordo com o excelente leque de actores. Sou algarvio, embora de uma zona litoral, mas só 2 ou trÊs actores é que me remeteram para um universo algarvio de profunda analfabetização e caído em esquecimento.