Tuesday, December 14, 2010

A guardiã dos sem abrigo


Sófocles, dramaturgo grego, escreveu há 26 séculos a tragédia Antígona. Uma obra prima da dramaturgia que põe em discussão o conflito entre a lei natural, interiorizada nas consciências, e a lei humana, escrita, criada para defender os cidadãos. Janusz Glowaski, dramaturgo polaco, escreveu em 1994 o texto Antígona em Nova Iorque. Uma reflexão sobre a solidariedade que se constrói nas relações entre os sem abrigo e os desamparados da vida. Figueira Cid, a partir da tradução de António Conde, encenou um espectáculo tocante, num espaço não convencional, a ermida de S. Bartolomeu, onde o público partilha do desconforto que invade de forma constante os sem abrigo. Quando o público chega ao sítio da representação é conduzido ao interior de uma capela em ruínas. Está relativamente protegido por um tecto trabalhado, umas mantas azuis escuras e uma protecção em plástico transparente que o separa da rua. Quando o espectáculo começa um pano corre, tornando opaca a vista para o lado de fora. O local protegido dos espectadores é invadido por um agente da autoridade, um zelador da lei, (Figueira Cid) que, qual Creonte, ao som do símbolo norte americano Bruce Springsteen, explica as vantagens da democracia e de um sistema que impõe uma lei igual para todos os cidadãos. O presidente da câmara está sujeito aos mesmos condicionalismos legais de um qualquer cidadão sem abrigo. O fiel zelador da ordem afasta-se e, através da tela, como se de um filme se tratasse, o espectador pode vislumbrar, dentro do seu conforto, a tragédia vivida diariamente nas ruas. Na parede das ruínas é projectada uma imagem das sombras dos arranha-céus de Nova Iorque. Um homem ouve, sentado num banco de jardim, o tema “Strangers in the nigth”. É de noite e usa umas roupas andrajosas. Chamam-lhe Sasha, um pintor russo interpretado pelo actor António Albernú. Faz-se acompanhar do seu parco universo de pertences, contido numa caixa de cartão. Um outro homem, o Pulga, interpretado por Pedro Estima, junta-se-lhe, entoando uma conversa sem nexo. Por fim chega uma mulher, Anita, interpretada por Lucília Raimundo, conduzindo um carrinho de compras, repleto de objectos dispersos, recuperados de sobras alheias. Pelos diálogos percebe-se que há uma relação muito própria entre os três. Se bem que manifestam uma certa hostilidade latente mostram, por outro lado, uma preocupação e um cuidado com cada um, como se pertencessem a uma espécie de irmandade. É essa relação de adopção mútua dos diferentes dá início à trama. Sabe-se que um sem abrigo morreu. Foi levado por uma ambulância. E agora, qual será a sua última morada? Onde poderá descansar? Creonte confronta novamente o público com esta informação formal, rigorosa, isenta de qualquer fundo afectivo. Um sem abrigo morreu e será enterrado dignamente num local definido pelo Estado. Esta é a Lei, é preciso que se faça cumprir. No parque as convicções são outras. O sem abrigo deve repousar num local onde os seus o possam visitar. É então que, por 19 dólares, se engendra um plano de busca, captura e recuperação do cadáver do amigo / irmão que partiu. Os dois homens, instigados pela mulher, vão procurar o corpo de Paulie, o sem abrigo morto. Trazem um corpo anónimo que reconhecem não ser o amigo que procuram. Mas Anita exulta de alegria e prepara os ritos fúnebres para enterrar dignamente o corpo do seu amigo no parque. Ao pé dos seus, onde os amigos lhe podem prestar homenagem de quando em vez. O polícia corta novamente a acção e o discurso narrativo centra-se nos acontecimentos que se seguiram ao enterramento do corpo do sem abrigo no parque público. O corpo é desenterrado, trasladado para um local onde os prisioneiros enterram os cidadãos sem identidade. Anita, qual Antígona, enfrenta Creonte e, perante a sua impotência, enforca-se na vedação do parque. Nesta história não havia um Hémon para perpetuar a felicidade, não havia um irmão morto e outro à mercê das aves de rapina. Havia a solidariedade daqueles que, tendo perdido tudo, não permitem que lhes roubem a dignidade de enterrar um irmão. E havia o olhar do público, impotente, acompanhado o rumo dos acontecimentos. No teatro como na vida, a pobreza continua encoberta pelas folhas caídas dos parques e pela indulgência colectiva de uma razão social que se torna impune perante o sofrimento alheio.
O espectáculo Antígona em Nova Iorque, encenado por Figueira Cid coloca-nos na posição desconfortável de seres socialmente conscientes mas que olham para a tragédia da pobreza e da exclusão social através de um filtro criado por mil e uma justificações, qual delas a mais convincente. Qual delas a mais falível.
Antígona em Nova Iorque assume-se como uma lição de cidadania dada pelos enteados da vida. Um excelente trabalho e um exemplo do serviço que o teatro deve prestar ao seu público.

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