Sunday, February 27, 2011

A Idade Maior


Depois de várias curvas na estrada chega-se a um caminho no qual não se vislumbram encruzilhadas nem entroncamentos. Apenas uma longa recta com fim anunciado. É o caminho a que se chega depois da reforma, quando se chega à conclusão de que o melhor será ir para casa e deixar os mais novos seguirem com a sua vida. Ou a altura em que se atravessa um país, nem se seja num cortador de relva, para nos reconciliarmos com as pessoas que valem a pena. Ou quando acordamos dos nossos sonos de ilusão e nos apercebemos de que tudo era mentira.
O Teatro Municipal de Portimão programou para esta semana dois filmes paradigmáticos do sentimento da velhice: “Vou Para Casa”, de Manoel de Oliveira e “Uma História Simples” de David Lynch. Os espectáculos de Teatro foram da responsabilidade da recém formada Companhia Maior, que reúne actores e bailarinos profissionais com idade superior a 60 anos, e o grupo de teatro sénior da Junta de Freguesia de Portimão. A Companhia Maior trouxe o espectáculo Bela Adormecida, encenado por Tiago Rodrigues. Segundo a produção, “Bela Adormecida é uma história sobre a passagem do tempo, o renascimento e as segundas oportunidades. É possível acordar num tempo que não é o seu e torná-lo seu?, pergunta-nos esta ficção. Será sequer possível que o presente seja pertença de alguém? E que lugar reserva o mundo para aqueles por quem passou um século de sono, enfeitiçados, e que agora acordam no futuro? Na nossa Bela Adormecida talvez não haja feitiço e não tenham permanecido jovens aqueles por quem o tempo passou. Talvez tenham estado acordados todo o tempo e apenas sintam que renasceram, pelo simples exercício de evocar a memória.” Este é um trabalho sobre o tempo e a nossa relação com esse grande escultor, de acordo com o eufemismo de Yourcenar. O príncipe é um velho que está sentado a uma secretária escrevendo as suas memórias. Queixa-se das dores que as suas raízes lhe causam, impedindo-o de dormir. Descobre que quanto mais dorme mais se esquece e decide escrever tudo para que a memória permaneça. De repente entra numa dimensão da memória onde o regresso é possível mas num outro corpo. O príncipe entra no palácio da princesa Aurora e encontra toda a gente a dormir. Velhos à espera de serem acordados. À espera do beijo que nunca chegou, da dança que nunca aconteceu, do olhar que nunca se cruzou. O príncipe beija Aurora e, à semelhança do conto para crianças, todos os seres que habitavam o palácio despertam com o poder daquele beijo. O sopro da vida e da memória. A mente desperta jovem num corpo envelhecido. O corpo já não responde com a velocidade do desejo mas o prazer da descoberta é o mesmo. Os velhos, idosos, como é politicamente correcto tratar as pessoas com mais de 60 anos, vão desocultando os seus apoios, as cadeiras, retirando os panejamentos que o tempo foi colocando. Panos atrás de panos são retirados e dobrados, deixando ver a verdadeira natureza dos suportes dos corpos. Aurora, cheirando a almíscar, atrai o príncipe. Com a elegância de primeira bailarina ao longo de anos na Companhia Nacional de Bailado Kimberley Ribeiro rodopia pelo palco extasiando o príncipe. A sua memória é o seu corpo, que transcreve para um alfabeto próprio tudo o que capta. Todos os que partilhavam o palácio com a princesa Aurora dançam na esperança de recuperar a juventude perdida. Enrolam os fios da vida que desperdiçaram e rodopiam com um olhar de adolescente deslumbrado. E com eles, o espectador recupera a ilusão. No final o príncipe entrega as suas memórias a Aurora, que as traduz para a sua metalinguagem orgânica e sai desse mundo paralelo para a realidade da dor. As memórias doem, mas são preferíveis à ilusão, ao mundo de sonho e encantamento que é a Arte, tão bem simbolizado pela imagem projectada do palácio-centro-cultural-de-belém. Tiago Rodrigues soube explorar as capacidades e as diferentes proveniências artísticas dos seus actores, embora o texto tenha parecido denso e longo. O recurso à fada má como ponto do mestre-de-cerimónias que se esqueceu de a convidar pareceu um recurso brilhante porque apontava para uma simbologia do mal que a culpa carrega ao longo da vida.
Profissional, sem falsos moralismos, com a carga dramática adequada, este trabalho foi um exemplo do que se pode explorar com actores que têm tudo a ensinar com a sua experiência e nada a perder.
O espectáculo Temporalidade, a que a encenadora Sofia Brito denominou performance, foi interpretado pelo grupo de teatro Sénior da Junta de Freguesia de Portimão. Com base num texto de Manuel António Pina, de Sofia Brito e das memórias dos actores o espectáculo percorre os fios das memórias mais agradáveis dos seus intérpretes. Os actores cantaram, desafiaram o público, dançaram, recordaram o primeiro beijo, o baile da vassoura e as cartas de amor. No limiar da memória ficou o Stabat Mater de Vivaldi que simbolizou o sofrimento das mães que caem perante a dor dos filhos mas que são amparadas pela solidariedade das outras mães. Um momento bonito que apontou para o sofrimento que é suavizado pelo ombro solidário de uma amiga. Assim como a cena dos quatro homens a ler o jornal ao som de anúncios populares nos anos 60 que estava muito bem conseguida. Mas no limiar ficaram as mágoas de que é feita uma vida completa. Um vestido de noiva com que se sonha ao som de Moon River, a canção que Audrey Hepburn imortalizou, aponta para os amores impossíveis e para noivas que nunca envergaram o seu vestido de sonho. No limiar ficou o desgosto de uma carta de amor que se atrasou um, dois, três dias, até que chegou um aerograma anunciando o fim da correspondência amorosa. No limiar da vida ficou o lado sombrio, as memórias pesadas, ficando um espectáculo incompleto porque irreal. Os actores tinham no olhar o brilho da irreverência e da saudade de outros corpos e conseguiram dar dinamismo ao texto. Mas deixaram de lado a matéria de que são feitas as rugas: a mágoa.
Este foi um exemplo interessante de partilha entre uma proposta de uma companhia nacional profissional e um grupo de teatro não profissional de âmbito regional. No final houve uma partilha de experiências e saberes e todos ficaram a ganhar. E abriram-se novos caminhos em cada estrada.

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