Friday, November 21, 2008

As Três Caixas Chinesas


Nos dias 19 e 20 de Setembro a companhia de dança Vuyani Dance Theatre actuou no Teatro das Figuras, em Faro, com o espectáculo Beautiful Me. Em palco estavam quatro músicos, tocando cítara, percussão, violino e violoncelo. Interpretaram as sonoridades que acompanham Gregory Maqoma, um bailarino e coreógrafo sul-africano, que desenvolveu este trabalho com outros três coreógrafos: Faustin Linyekula Vincent Mantsoe e Akrahm Kahn, este último discípulo de Peter Brook, com quem trabalhou na produção do monumento ao teatro que foi Mahabharata.
Gregory Maqoma é considerado pela crítica internacional como um dos mais talentosos coreógrafos do seu país. Nos trabalhos apresentados, que já lhe granjearam prémios internacionais, desafia constantemente a noção de dança através de uma linguagem coreográfica única, que tenta redefinir a cada passo.
Beautiful Me é a terceira parte de uma trilogia iniciada em 2005. Retomando a metáfora das três caixas chinesas, podemos assistir a outras tantas visões da dança e do Universo que nos surgem fundidos no corpo de Maqoma. O espectáculo começou no escuro, com a luz da música, criada pelos quatro instrumentistas em palco. A luz vai tomando corpo, pintando com tons escuros o palco do Teatro das Figuras. Maqoma vislumbra-se então ao fundo do palco, discreto, quase um esboço a precisar de ser animado. A luz continua a pintar o caminho que o bailarino deve seguir. Maqoma segue a estrada de luz até à boca de cena e, aí, desenvolve uma coreografia de excepção onde nos apresenta um notável domínio do corpo. A segmentação é trabalhada até ao mais ínfimo pormenor e a música, criada em palco, é conjugada com a percussão do corpo do bailarino.
O bailarino continua a dançar e a luz abre-lhe o espaço. O pequeno rectângulo transforma-se num espaço onde o Eu tem de se confrontar com o Outro. A reflexão sobre si próprio, que caracteriza a primeira etapa do Círculo Hegeliano, pode corresponder ao domínio da reflexão da primeira caixa chinesa. No seu novo espaço o bailarino comunica usando a sua voz. Comunica passando uma mensagem que não é só orgânica: torna-se verbal. Pede ajuda ao público para que se lhe junte e em uníssono pronunciem a letra R. E, apesar deste contacto com o outro, apercebe-se de que a sua identidade não foi ainda ganha. Apesar de saber dizer a letra R, nunca soube de facto quem era Gregory. É nesse momento que se opera a revolução que lhe devolverá a identidade, entre o ser e o não ser. O ser Universal que transforma a História é o ser que opera a síntese e lhe traz a certeza do seu Eu. É a terceira caixa chinesa, ou seja, a relação do Homem com a sua História. É neste momento que Gregory recorda os nomes dos governantes de alguns países e povos africanos sobre quem repousa a responsabilidade de uma luta histórica em demanda da identidade, pois, para além de poder ser uma entidade em uníssono com a natureza, o artista é também um ser-no-mundo, assumindo o seu papel social e político.

Este bailarino partilha com os três coreógrafos do espectáculo um sentido de Humanidade muito profundo, apesar das abordagens coreográficas assumirem linguagens diferentes. O seu corpo tornou-se, assim, um arquétipo ideal, reinterpretando emoções e histórias e traduzindo criativamente, a partir da tradição e da linguagem, elementos que lhe eram pouco familiares, sendo o reflexo do génio criador dos coreógrafos. Este foi um processo alquímico em que o corpo de Maqoma sofria a feliz transmutação dos elementos coreográficos para no-los devolver sob uma forma apurada de arte.
O final encerra o ciclo e o bailarino, reencontrado consigo próprio porque se reencontrou com o Outro e com a sua História, regressando à sua posição inicial. Não já como esboço mas como um ser autêntico que se afirma perante si e perante a vida. A tampa da última caixa fecha-se sobre si própria encerrando a Humanidade no corpo de um Homem.
Neste trabalho Gregory Vuyani Maqoma continua a sua linha iniciada em 1987, contribuindo para reflectir sobre as grandes questões que perturbavam a sociedade sul-africana.
Este espectáculo fazia parte do Festival Internacional de Dança Contemporânea “A-Sul”, programado pela DeVIR e que este ano não foi produzido, segundo a direcção daquela associação cultural, devido a um caricato “esquecimento da Direcção-Geral das Artes” quanto à necessidade essencial financiamento do mesmo. Os amantes da Dança, que agendam bianualmente a sua rentrée tendo em conta este evento, lamentam profundamente este corte abrupto num festival que percorre a região de uma forma sistemática há mais de uma década.

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