Friday, November 21, 2008

Cantar Aos Peixes


José Eduardo Rocha foi o compositor, José Maria Vieira Mendes o autor, Manuel Wiborg o encenador. Estes criadores encontram-se para, no palco, desenvolverem no acto efémero do espectáculo, o musical Aos Peixes. O espectáculo teve por base a obra Moby Dick, de Herman Melville, sendo assumidamente, segundo a produção, “um texto a várias vozes”. Manuel Wiborg e Cláudio da Silva são os actores, assessorados pela soprano Ana Sacramento, pelo tenor José Lourenço e pelo barítono Nuno Morão.
O espectáculo Aos Peixes foi um projecto pontual com base num texto à procura de um leitor. Como assume José Maria Vieira Mendes no folheto/programa de apoio ao espectáculo: “Preferia não escrever, preferia não ter de falar, não explicar. Isto veio a propósito das primeiras páginas da Ordem do discurso de Foucault. Ismael é como todos, diz ele, precisa de sair de terra, necessidade do mar, para “afugentar o tédio e normalizar a circulação”. E lá vai o gajeiro. Sozinho no mastro (torre de marfim?), sem companhia, à procura de um leitor. Este texto procura um leitor. Este texto faz parte de um espectáculo. O leitor não vê um espectáculo, como o espectador não lê um texto. É da natureza dos vocábulos. Este texto não quer ser escrito. O narrador não quer contar, porque não quer começar porque também não quer acabar. É uma maneira de ler o Moby Dick que outro escreveu. Ler com outra ordem e tentar a desordem. Um acto falhado. Procura-se um leitor ideal e também um espectador ideal. Cheguei a pensar que só eu o podia ser. Depois concluí que nem eu o podia ser. Preferia não escrever, preferia não ter de falar, não explicar. O acto é falhado porque não só se começa como também se acaba. E a história lá está. Por isso no fim os pés estão na areia à espera de nova partida. Falhar, falhar outra vez, etc. Nada disto é trágico. Não é uma derrota mas o princípio de uma vitória. Ou o esboço dela. Esboço de um esboço.”

Um pouco à procura do sentido pirandelleano José Maria Vieira Mendes assume que este texto não quer ser escrito nem o narrador quer contar porque não quer começar nem acabar. O autor quis assumidamente ler com uma outra ordem para tentar a desordem, dando continuidade a um ciclo de renovação. O ciclo Becketteano a lembrar que para falhar é preciso falhar outra vez e falhar melhor. Este é o texto de um homem só. Ismael gostaria de ser o protagonista mudo e não ter nada para contar, como a baleia branca. Mas Ismael é o único sobrevivente, cabendo-lhe assim a tarefa de tudo descrever. Neste espectáculo Ismael, interpretado por Cláudio da Silva, conta a sua necessidade de sair para o mar, partilhando a solidão com o mastro de onde avista o gigante dos oceanos. Manuel Wiborg é o texto que suporta o texto, que é suportado pelo outro texto: a música.
Ao princípio Manuel Wiborg está dentro de si próprio. Dialogando com a música de José Eduardo Rocha posiciona o espectador na acção. Introduz Ismael, que por sua vez introduz o Genesis criador. Em articulação com o filme projectado de Álvaro Rosendo o espectador visualiza metaforicamente a cadeia da criação. Ismael despe-se de si, transforma-se e transvia-se perante o olhar do espectador. Numa assunção dramatúrgica de teatro dentro do teatro Cláudio Silva rasga as vestes, dobra as calças e molha o cabelo para dar uma impressão de credibilidade. Já assumindo a personagem de Ismael, o sobrevivente, partilha com o auditório o sentimento de solidão do mar que o mar lhe provoca e assume que esse olhar lhe transfigura a imagem que sempre fez do mundo. Manuel Wiborg cria um alter-ego de Ismael na figura da soprano Ana Sacramento. Ela é o outro lado, o intuitivo, que ouve na solidão dos oceanos. O lado que escala sinuosamente o mastro, oscilando ligeiramente. O lado que diz as coisas importantes. Manuel Wiborg actua como uma outra vertente: a vertente do homo habilis, que, mau grado o vento e as vagas impiedosas, luta com a baleia e sobrevive à tempestade. Qual Jonas, no interior dos destroços, o narrador penetra por dentro dos destroços da alma de Ismael. E confronta-se com o Outro, o que desoculta o seu lado feminino e seduz o monstro. Consegue adormecê-lo com a voz doce antes de excitar a sua fúria.
A interpretação dos actores ganha densidade com a música de José Eduardo Rocha. Os diferentes matizes do espírito do marinheiro a sobriedade do livro do Génesis, a sátira, a profundidade das águas caladas, estão patentes na composição musical, na interpretação dos cantores e na execução do Ensemble JER. O suporte musical dá a verdadeira força dramática ao texto, ultrapassando algum registo monocromático dos actores. O desenho de luz evidencia as passagens do texto musical para o texto dito pelos actores e perverte o “efeito de aquário”. Neste espectáculo a luz é utilizada para esconder, para adivinhar silhuetas e sombras, à imagem da visão do mareante que adivinha o vulto de Moby Dick. Um belíssimo trabalho que se adequa ao texto de José Maria Vieira Mendes. Mais que um suporte técnico a luz insinua-se como mais uma personagem ondeante que conduz a atenção do espectador.
Quase perplexa é a alusão ao orador António Vieira. Por ser dirigido aos peixes o autor cruza-o com o grande mestre da retórica sem explorar nem desenvolver muito esse cruzamento. Mais uma vez a voz feminina é a voz do discurso que se pretende reter. Mas a inserção dessa voz maior deveria ter sido mais bem explorada. Ismael gostaria de ser como a baleia. Será que António Vieira gostaria de ser como o receptáculo mudo de um peixe?
A movimentação em cena não é muito rica, não tendo havido um aproveitamento real das possibilidades cénicas. Uma rede de galinheiro ganha uma dimensão polimórfica jogando com os actores vários papéis. De praia coberta de escombros assume-se como mar, como resguardo de exploradores marítimos. Os cones brancos aglomerados na direita baixa lembram a superfície da baleia ornada com pequenas conchas.
No global o ganho fundamental deste espectáculo foi a criação e a execução musical de José Eduardo Rocha que conseguiu dar vida a um texto que queria ser escrito e que prima pela vulgaridade. Os actores situaram-se na difícil charneira da interpretação credível de um texto desinteressante e o contraponto com a música e os cantores. E, embora Manuel Wiborg não se tenha distanciado muito do seu registo habitual, tão diferente do magnífico trabalho “Debaixo de uma Cidade”, deu uma prestação sóbria ao narrador da história. Mais interessante foi a prestação de Cláudio da Silva, explorando as diferentes possibilidades que a personagem de Ismael lhe permitia.
Pela música de José Eduardo Rocha e pela interpretação do Ensemble Jer e dos cantores, vale a pena apreciar o trabalho Aos Peixes, em cena até dia 20 de Julho no teatro da Trindade.

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