Friday, November 21, 2008

O Cabaret da Estrada


Nos passados dias 27 e 28 Tavira teve a oportunidade de receber o último espectáculo da digressão inicial da produção Caravan Cabaret. Um espectáculo encenado por Marta Pazos para divertir, dirigido a toda a família, ideal para as noites de Verão.
O espectáculo começa com uma pequena intervenção junto do público: os actores deambulam por entre a assistência, assumindo diversas personagens. Umas um pouco diferentes do cidadão comum, outras adoptando as suas caricaturas mais frequentes. O homem armado, cuja mulher, de cabeça coberta por um lenço, o segue como uma sombra, que olha de forma intimidatória para os espectadores. A rapariga que corre toda a plateia a gritar pelo Chico, a menina pequena que ainda usa o horrendo penso nos óculos para corrigir o estrabismo, o “pintas” de óculos escuros, sempre a morder o esquema. Depois a famosa brasileira, professora de aeróbica, de rádio ao ombro, muito enérgica, a puxar pelo “alto astral” e preocupada com a hidratação. Esta última personagem sobe ao palco e convida dois voluntários, que pertencem ao elenco, para “aquecer” o público. Aquecer os pulsos para treinar as palmas, e aquecer as gargalhadas. Como cenografia, apenas a imagem de uma caravana prateada, com as letras Caravan Cabaret iluminadas por cima. A encenação propõe, então, uma visão teatral do interior do cabaret com os actores já como personagens, a aquecerem fora da caravana, sem a luz de cena a incidir. Depois entra um ciclista que, apesar de prenunciar um número de perícia, dá duas voltas ao palco, cai, e traz a reboque, presas por uma corda, as personagens do elenco que integra o Cabaret. Nesse momento o elenco interpreta um dos temas imortalizados por Liza Minnelli no filme Cabaret. Assume-se, assim, o início desse tipo de espectáculo específico, bem como a falta de uma voz potente que nos faça esquecer esse momento memorável do filme de Bob Fosse. Após esta entrada, na qual os actores mostravam ao público folhas de papel com várias palavras escritas como “petróleo”, “desemprego”, “Portugal” e, ao chegarem à boca de cena, as rasgavam com ar de desafio, Susana Nunes, interpretando a personagem Alorna Vegante, faz as introduções da praxe e anuncia um dos números mais divertidos da noite: a domadora de leoas. Esta personagem, munida de chicote, traz consigo duas actrizes vestidas de leoas e simula um número muito divertido, geralmente utilizado nos circos, de subjugação de animais. O espectáculo desenvolve-se numa sequência de números característicos de cabaret, havendo, não obstante, um desequilíbrio notório entre eles. Há números bem conseguidos e engraçados, como o das gémeas siamesas, o do cantor de charme que diz um poema e é secundado por uma mulher, cantando o clássico italiano “paroles, paroles, paroles...”, recriando um número que esteve muito em voga num dos programas de variedades da RAI nos anos 70, bem como o tema “Fly me to the moon”, interpretado por Marco Ferreira, o número de ilusionismo de Pedro Ramos, interpretando um mágico decadente, e o striptease de Susanas Nunes, que motivou a corrida de uma criança para junto da boca de cena, tentando recolher todos os pormenores, que lhe deleitavam a vista, para a memória do seu telemóvel! Os restantes números, começando pela outra dupla de diferentes, que para além de serem anões, ainda tinham de se defrontar com a visão atroz e repugnante de uma mulher com barba, e acabando numa coreografia do corpo de baile feminino, à qual faltava coordenação, deveriam ter sido mais trabalhados. O número da cantora que se expressava mal, desafinando diante do pára-quedas mal iluminado, contendo corpos no seu interior que nada faziam a não ser manter o pára-quedas com volume, era descabido e completamente desnecessário. O quadro da boneca, misto de ventríloquo com Chaplin, era fraco e, como tal, desnecessário, bem como o da espanhola que cantava mal, acolitada por dois bailarinos, sobressaia apenas, pelos actores pelo que, deveriam incluir neste número uma cantora ou uma actriz que cantasse sem desafinar. Valeu ao espectáculo no final, a rábula sobre a ASAE e a coreografia arrojada dos três actores, que divertiu o público. O problema dos pontos mais fracos deste espectáculo prende-se, sobretudo, com o conceito de diversão, ou seja, este conceito atinge mais o público quando os intérpretes sabem de facto cantar, ou dançar, ou representar. A partir deste pressuposto, podem brincar com as canções, com o corpo, ou mesmo com as palavras, assegurando um resultado divertido. Quando os intérpretes não sabem manter uma canção até ao fim o público fica preso na desafinação e o resultado global perde-se. Foi o que aconteceu com a coreografia do corpo de baile quando interpretavam um tema retirado do filme “Quem tramou Roger Rabbit”. Já tive a oportunidade de apreciar inúmeras coreografias deste género em grupos não profissionais, com cinco ou seis bailarinas dançando com cadeiras, que elevavam os braços e as pernas à mesma altura, assumindo uma atitude em cena que contagiava o público. Neste espectáculo isso não aconteceu, parecendo uma coreografia de final de ano numa récita escolar, o que é imperdoável numa estrutura profissional. Tal como Coco Chanel dizia, “Se uma mulher se veste de uma forma horrível, as pessoas reparam no vestido. Se o fizer de forma elegante, reparam na mulher”. Neste espectáculo escapou ao público a essência do Cabaret porque não houve o cuidado de apurar os pormenores. Os sons desafinados invadiram as canções, despojando-as do seu sentido lúdico e divertido. A falta de coordenação nas coreografias sujou a atitude que se requeria em palco. E depois de nos termos deleitado com o espectáculo “Com Muito Amor e Carinho”, esse sim, um espectáculo cuidado, com o ritmo certo, e com um contexto português muito interessante, esperava-se mais deste projecto. É que mesmo que a linha do espectáculo fosse um piscar de olho ao neo-realismo italiano, recordando o belíssimo filme de Fellinni La Strada, o facto é que mesmo esses artistas de “estrada” tinham uma capacidade que os elegia como únicos. Zampano quebrava as correntes com a força do seu tórax, proeza que mais ninguém fazia. Quando vemos uma intérprete cantar desafinadamente o público pensa: mas não havia ninguém que cantasse melhor para fazer aquele número?
Uma palavra de apreço ao programa, muito completo, com a contextualização histórica do conceito de Cabaret e com textos divertidos sobre as personagens. Este é um espectáculo para rodar nos próximos dois anos. Tempo para afinar vozes e pormenores. Esperemos que daqui a dois anos este seja, de facto, um espectáculo de Cabaret. Divertido, com crítica social, mas ao qual não falte a elegância nem o profissionalismo.

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