Friday, November 21, 2008

O Jogo dos Espelhos Partidos


O público entra na sala da Antiga Lota de Portimão e não se depara com o pano de boca. A curiosidade do espectador é espicaçada a partir de um pequeno painel, forrado a cortiça, que ocupa o centro do palco. É atrás do painel que a magia começa. E aqui fala-se em magia porque o texto é uma reflexão sobre a capacidade de provocar uma ilusão e de levar o outro a acreditar nela. Sobre a capacidade de iludir quem não tem a consciência tranquila.
Com base no entremez de Cervantes que deu origem mais tarde ao conto O Rei Vai Nú, no qual apenas uma criança teve a coragem de gritar a verdade, Jacques Prévert criou um texto contemporâneo que brinca com os comportamentos supostamente exemplares dos poderosos e dos governantes de um Estado. A virtude pode ser mensurável através de um retábulo maravilhoso, visível apenas para os puros em pensamentos e actos. Quem não quer ser reconhecido como virtuoso perante os seus pares e perante os seus súbditos?
Pedro Monteiro assumiu o espaço vazio e, a partir de um painel, construiu inúmeros cenários que o público conseguiu visualizar. O verdadeiro retábulo das Maravilhas foi o que se conseguiu criar através da sugestão da imagem, omitindo o óbvio e mostrando o fragmento. Através de um painel o público conseguiu visualizar a praça principal da cidade, o sítio dos sem-abrigo, o salão onde os governantes recebem os seus tributários. Alina Monteiro vestiu o espectáculo do mesmo tom da cortiça: elemento poroso que se deixa moldar e que isola dos sons e evita os choques eléctricos. Todos são vestidos do mesmo material: os que enganam deliberadamente e os que deliberadamente se deixam enganar. A causa do engano é comum e por isso todos usam a mesma veste. Os figurinos de Alina Monteiro, construídos a partir do trabalho da cortiça vão ao encontro da visão porosa e opaca do texto. O jogo de enganos é construído a partir da criação de um foco de sentido na linha oposta à que se está à espera, como se se tratasse de facto de um cruzamento de feixes luminosos, no qual a atenção é desviada e conduzida para onde o ilusionista deseja.
O elenco, constituído por André Canário, António Salvador, Filipa Rei, Igor Martins, Pedro Monteiro e Rita Neves, está equilibrado e consegue manter o ritmo do espectáculo de forma coerente e adequada. Este colectivo de actores fez jus ao desejo de Jacques Prévert que é, em última instância, denunciar as injustiças por demais visíveis que alguns ilusionistas insistem em manter de forma oculta e escamoteada. Jacques Prévert é incómodo nas sociedades que não assumem a transparência, preferindo a aparência do bem-estar ilusório, recusando encarar a realidade cruel.
Os dois mestres da ilusão chegam a uma cidade prometendo maravilhas. Chegam com a música, criada por uma criança que, segundo os saltimbancos, foi raptada, como é da tradição. Nesta visão crua da realidade também o artista é apanhado nas malhas de uma sociedade que lhe é adversa e que o julga de forma injusta. O artista é sempre alguém à margem, capaz de proporcionar os maiores prazeres mas também capaz de cometer os piores actos, como é o caso do rapto de uma criança. E aqui Prévert revê-se como um dos autores de uma linha de teatro que, através do absurdo, nos ajuda a ver a realidade em toda a sua magnificência e em toda a sua podridão.
É um pormenor interessante a criança-música ser rejeitada pelos poderosos. Quando a criança começa a tocar e a música começa a invadir a cidade, os governantes sentem-se mal e ordenam-lhe que pare. Talvez porque saibam que a música desbloqueia os sentidos e conduz a uma libertação interior, que é exactamente o que não interessa numa sociedade onde o medo domina.
A apresentação das maravilhas no painel é o momento alto do espectáculo. O ilusionista das emoções mostra imagens que sabe não existirem para um público que garante ver o que não existe. É exactamente como um espelho partido que, apesar de mostrar uma imagem, o faz de forma imperfeita. A configuração da cena neste quadro é significativa deste jogo de enganos, uma vez que os actores são dispostos numa linha que toca a linha do retábulo num ângulo recto, mas em faces contíguas. Mesmo fisicamente os habitantes dessa terra não poderiam estar a reconhecer coisa alguma na imagem sugerida pelo saltimbanco. No entanto, e para guardarem a sua virtude perante a opinião pública, vêem uma série de maravilhas. Bailarinas dançando com a arte de Salomé, animais maravilhosos, ratos invasores do bem-estar! E é só quando um soldado chega com novidades do mundo real é que os habitantes da cidade se apercebem de que estiveram o tempo todo a ser enganados à custa da sua pretensa virtude. Nessa altura já os impostores iam longe, desmascarando as falsas virtudes dos pseudo nobres e valorosos dirigentes que supostamente são o exemplo da nação. Hoje como no século XVI, hoje como em 1935, os dirigentes continuam a brincar com os seus cidadãos o jogo do retábulo das maravilhas, mostrando um contexto sociopolítico que se sabe não existir mas que é o garante da sua salvaguarda moral.
Um texto de carácter interventivo que denuncia as injustiças sociais e que, apesar de pôr o dedo na ferida, é divertido e contribui para uma das funções mais nobres da arte: aprender de forma lúdica indo ao encontro das inconsistências do ser humano. E o verdadeiro retábulo foi o facto do público se ter podido apoderar do conteúdo imaginário através do jogo do faz-de-conta de que só os actores detêm as regras.

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