Monday, November 24, 2008

A culpa da fantasia


O espectáculo Sonho, produzido pelo “Projecto Novos Actores” teve por base o derradeiro filme de Kubrick, para muitos cinéfilos filme de culto, para grande parte da crítica, uma desilusão enquanto filme. Por ter sido um projecto que despertou amores e ódios tão intensos foi um acto de coragem Renato Godinho ter pegado na visão de Kubrick de Traumnovelle, de Arthur Schnitzler e fazer dela uma adaptação para teatro. O elenco foi constituído por cinco jovens actores, formados na Escola Profissional de Teatro de Cascais, com alguma experiência de palco e com a ousadia necessária para arriscarem num projecto desta complexidade. A Escola Profissional de Teatro de Cascais facultou também os sete figurantes necessários à produção do espectáculo.
Esta produção apresentou-se no magnífico espaço do museu Castro Guimarães, em Cascais. É um espectáculo de itinerância, no qual os espectadores são convidados a seguir os actores desde o claustro do museu até ao seu interior, passando por inúmeras salas de decoração requintada. Os espectadores entram e é-lhes facultado um folheto concebido com apuro, onde são convidado a participar naquele ambiente de emoções que será o espectáculo. No claustro do museu ouvem-se soar acordes jazzísticos, serve-se leite em copos de cocktail e entram personagens vestidas com requinte, que convidam os espectadores a partilhar com o corpo as sonoridades sentidas. Há pares a dançar dentro do claustro. Público que foi convidado a partilhar aquele momento por bonitas raparigas envergando vestidos de noite. De repente chegam as personagens principais. Também participam na festa mas começam a dar-nos conta das suas conversas. Um médico que está a ser insistentemente assediado por duas raparigas encantadoras diverte-se mas não consegue disfarçar o embaraço de não lhes poder dizer educadamente que não está interessado no seu convite. Pelo seu lado, a mulher do médico está também a ser vítima de uma provocação por parte de um homem com quem dança e de quem se despede educadamente. Depois deste episódio o público é conduzido para uma sala no interior, onde se recria o quarto do casal em destaque na festa do claustro, Artur e Sofia, interpretado por Joana Castro e Romeu Vala. Vêm divertidos da festa, contando um ao outro as peripécias vividas. Perguntam-se mutuamente se deveriam ter motivos para ter ciúmes e é aqui que o verdadeiro enredo começa. O ciúme, fruto da imaginação e da construção de fantasias faz-se sentir no médico Artur Fridick a partir do momento em que a sua mulher lhe confessa ter tido uma fantasia erótica com um desconhecido enquanto estavam a passar férias num local distante. Artur fica ferido no seu orgulho e confessa a sua esposa, Sofia, que nessas mesmas férias também ele tinha tido um deslumbramento estético por uma rapariga desconhecida que passeava na praia. Diónisos a quebrar a ordem apolínea, As circunstâncias, tanto para um como para outro, não permitiram que nada de físico acontecesse. Mas ficou instalada a dúvida: será que se eu tivesse oportunidade me manteria fiel à pessoa que realmente amo? A partir da formulação dessa dúvida na consciência de ambos o espírito de festa e alegria modifica-se e começa a pairar uma nuvem negra de dúvida, propícia à destruição da confiança entre os dois. O médico recebe um telefonema informando-o que um colega acabou de falecer e sai abruptamente de casa. O público é convidado a segui-lo através de corredores que vão desocultando o desejo através da apresentação de fotografias a preto e branco de um par amoroso envolvendo-se numa praia deserta. Um trabalho lindíssimo de um erotismo latente que acompanha a escalada de emoção do espectáculo.
Artur chega a casa do falecido colega e consola de forma polida e educada a sua filha, Anya, interpretada por Lia Carvalho. Foi um momento intenso, de comoção, no qual, inesperadamente, Anya lhe revela o seu afecto, beijando-o repentinamente. Artur escusa-se com estupor e, quando regressa o noivo de Anya, o ambiente volta aparentemente à normalidade. Artur sente-se perturbado com o encadeamento de todas estas revelações e, quando abordado por uma prostituta, interpretada por Sara Matos, segue-a sem pensar. No quarto conversam. Artur, incapaz de lhe tocar fisicamente, toca-a profundamente na alma. Sai, e incapaz de voltar para casa vai para um bar a fim de tentar pôr as ideias em ordem. O público segue-o até uma sala de jantar com uma mesa posta ricamente adornada com loiça refinada, onde todos os pormenores eram dispostos com esmero. Foi nessa sala que Artur decidiu ter a aventura da sua vida. Reencontrou um antigo colega de medicina, interpretado por Ricardo Alas, que se dedica a tocar piano de olhos vendados em festas onde o ambiente é no mínimo suspeito. As mulheres são deslumbrantes e os participantes, envoltos num imenso secretismo, só podem entrar na festa se usarem máscara e disserem a palavra-passe. A fantasia de Artur começou a trabalhar e encontrou um estratagema para entrar na festa mistério. O público foi convidado a deslocar-se de novo ao claustro onde, para entrar, teve de colocar uma máscara neutra. Tornou-se parte do ritual. Dentro do claustro seis jovens raparigas envergavam, para além de uma máscara veneziana, uma capa de cetim que as cobria da cabeça aos pés. A música que Kúbrick utilizou no filme De Olhos Bem Fechados foi a música utilizada para criar a ambiência de ritual orgiástico que estava prestes a acontecer. A um sinal do líder do ritual as raparigas abrem as capas e revelam os seus corpos num tango coreografado por Natacha Tchitcherova, ao som de uma música utilizada noutro filme protagonizado por Nicole Kidman: Moulin Rouge. Pouco ousado, quer nos figurinos, quer na atitude das jovens dançarinas, à qual faltava o olhar perturbador da sedução. Mas é no meio desta festa que Artur é desmascarado e enxovalhado perante a multidão. É obrigado a retirar a máscara, revelando-se como intruso numa festa só para convidados. Sai da festa vexado e, a partir desse momento, o rumo dos acontecimentos modifica-se e Artur vê-se envolvido num vórtice vertiginoso de eventos que o perturbam: o desaparecimento do seu amigo pianista, o desaparecimento da prostituta com a qual conversou, a morte de uma rapariga que o tinha defendido na festa. Fora de si vai falar com o amigo Henrique Gussman, que o alerta para os perigos de alguém que quer passar a frequentar um mundo ao qual não pertence. Henrique revela a Artur uma série de peripécias, criadas para o proteger, incluindo a prestação de Lena, contratada para dissimulamente o afastar de perigos reais. Artur volta a casa e conversa demoradamente com a sua mulher. Percebe finalmente porque não pertence àquele mundo, conseguindo ultrapassar a fantasia do sonho com a efectiva consumação da carne. O fim do caos é consumado com o regresso a Diónisos, instalando-se finalmente a ordem apolínea.
Esta obra que Renato Godinho adaptou para teatro revelou inteligência na adaptação do espaço do Museu Castro Guimarães, conjugando o interior daquele espaço histórico com o suporte artístico das fotografias a preto e branco do casal na praia. Reconhece-se o trabalho intenso dos jovens actores na manifestação das emoções requeridas a um texto tão complexo. O jovem cicerone Igor Sampaio e Melo cumpriu de forma adequada o seu papel. Sóbrio, elegante e atento aos espectadores com mais dificuldades na deslocação entre as cenas, foi o cicerone ideal. Às raparigas figurantes ainda falta aquela atitude e aquele olhar insinuante que provoca em quem as vê a capacidade de sonhar. Um projecto que cumpre os seus objectivos e convida o espectador a penetrar de forma carnal no mundo do sonho.

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