Friday, November 21, 2008

O Sotaque de Olhão


A cidade de Olhão está a comemorar, neste segundo semestre, os duzentos anos da Restauração do domínio francês. Teatro, música e cinema são algumas das propostas para que os visitantes possam usufruir culturalmente de tão honorífico título, concedido à então vila pelo príncipe regente D. João, por esta ter servido de rastilho e lançado a revolta que expulsou as tropas francesas da região.
Dentre todas essas comemorações foi também convidado o actor e encenador João Evaristo para conceber um espectáculo sobre a sua cidade natal. João Evaristo lançou o repto ao seu companheiro de palco de há vários anos Joaquim Parra e lançou mãos e ideias ao trabalho. Investigou as histórias típicas olhanenses que passam de boca em boca mas que não têm registos escritos e propôs-se escrevê-las para as mostrar sob a forma de um espectáculo de teatro. Segundo João Evaristo, “A peça retrata uma cena quotidiana de dois pescadores que enquanto remendam as redes queixam-se da vida, das dores da alma e do corpo e recordam várias histórias humorísticas do imaginário olhanense. A Carta do Marítimo, S’aquile era Marroques e O Camujinhe, são histórias que, entre outras, se vão enredando numa conversa humorada, onde ainda há lugar para referências a figuras como o Candinhe Lêtere e O Coxo da Muleta.” O espectáculo decorre num pequeno palco que foi coberto de areia. A ocupar o lugar de destaque em cima do palco está uma pequena embarcação: o sustento da maior parte das famílias de Olhão. Quando o público entra na pequena sala com lotação de 50 lugares depara com a cenografia e com uma imagem da Ria Formosa, projectada no ciclorama. Quando o espectáculo começa apaga-se a imagem da Ria, remetendo o protagonismo para os dois actores. Entra João Evaristo ouvindo um rádio portátil. Mal se lhe junta Joaquim Parra, começam as histórias, as partilhas, as cumplicidades. E como as palavras são como as cerejas as histórias sucedem-se entre risos e piscares de olho. Balançando entre a brejeirice do “diz que disse” e as memórias trágicas do tráfico ilegal de passageiros para Marrocos os actores aguentam um ritmo coloquial que permite um ambiente de boa disposição que provoca o sorriso e a gargalhada. Destaca-se a proverbial disputa entre os “filhos de Olhão” e os “filhos de Faro”, apresenta-se o preocupante flagelo da bebida entre os pescadores, aponta-se a descriminação negativa entre os pescadores e os outros filhos da terra. Estas histórias surgem a propósito da descrição mais ou menos maldosa de alguns incautos espectadores, que servem de ponto de partida para a descrição de figuras tipo da cidade. “Olha, aquele ali à frente, diz que é sobrinho do outro que está ali atrás com a cabeça rapada. É como o outro que também diz que tem um sobrinho, mas afinal, parece que não é…” E recomeça toda a história do “diz que disse” que, entre anedotas mais ou menos conhecidas, vai dando a conhecer alguma da história do povo de Olhão.
Hilariante foi o momento em que Joaquim Parra fez de Santo padroeiro e não atendeu às preces egoístas de um pescador. Através de uma marosca, o sacristão conseguiu baralhar o pescador, que tinha como intuito destruir a igreja e o Santo. O pescador ameaçou o suposto filho do Santo padroeiro, prometendo voltar mais tarde para ajustar contas com um Santo que não cumpre com o prometido.
A caracterização que realça os maus dentes e a expressão corporal dos dois actores contribuem para que este espectáculo seja um retrato vivo do imaginário sócio cultural do povo de Olhão.
A cumplicidade sentida entre os dois actores provoca no espectador uma sensação de familiaridade, promovendo um ambiente que se deseja intimista e descontraído, onde se aprende em olhanense o que foi o sofrimento das gentes ligadas ao mar.
Este espectáculo assume-se como um documento histórico que desoculta as memórias escondidas na tradição oral, devendo ser publicado e disponibilizado em texto bilingue, com a respectiva grafia no alfabeto fonético assumindo a pronúncia específica de Olhão, em paralelo com a grafia do português padrão. Enquanto não vem o novo acordo ortográfico estas podem ser formas de preservar também a cultura de um povo através do seu linguajar específico.
Também na Sociedade Recreativa Olhanense está patente uma surpreendente exposição de fotografia. “Femmes: fotodrama” é um conceito que associa a fotografia e o teatro. Em termos práticos, é uma peça de teatro encenada para ser fotografada. Com fotografia de Marta Vilhena, encenação de João Evaristo e figurinos de Sabrina Ildefonso, a exposição permanecerá na Sociedade Recreativa Olhanense, até ao final do mês.

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