Friday, November 21, 2008

Benvindos ao Paraíso


Uma mulher com um vestido elegante e sapatos de salto alto empurra um homem que se encontra acocorado num carrinho de transportar mercadorias. O homem toca um pequeno acordeão e atravessa o palco transportado nesse lento empurrar, lembrando o regresso aos primeiros tempos de ligação quase uterina, em que fazia parte de um outro corpo. Aqui a mulher assume-se como a condutora de decisões e de seres. Seres que se deixam conduzir entoando uma melodia triste. Esta é uma imagem que atravessa todo o espectáculo, uma vez que assumidamente nele se vai brincar com a identidade de género. Paraíso é a referência ao estado que o comum dos mortais persegue quando assiste a um musical norte-americano. O cliché é assumido para se discutir a questão da identidade sexual.
As mulheres de Olga Roriz assumem habitualmente uma identidade marcadamente feminina, trajando vestidos que lhes marcam a figura e calçando sapatos de salto alto que, tal coturnos da antiga Grécia, lhes eleva a personagem. Os três tipos de relação abordados de forma caricatural pelo casal de apresentadores eram: o casal em que ambos olham na mesma direcção, não havendo uma subjugação. O segundo, era o casal em que olham um para o outro, conduzindo-se como um tango. Neste caso a mulher é conduzida, subjugada pelo homem. No terceiro caso, a relação é do tipo que um depende do outro. Neste caso a mulher é altamente dependente do homem. Partindo desta imagem Olga Roriz constrói toda uma teia de relações complexas onde o corpo se alia à voz e ao movimento, resultando desse misto uma leitura que desoculta um significado ambíguo.
Olga Roriz joga com a atitude perante a vida. Metáfora esperada da atitude num palco: a cantora inexperiente, que se sujeita ao julgamento mais impiedoso, e a diva que passa incólume a toda a cena e se assume como detentora de plenos poderes do palco. No palco, tal como na vida, o que conta é a atitude. O movimento procura ilustrar o conteúdo de uma ideia, fugindo ao virtuosismo de um tecnicismo estéril. Assim, Astaire e Rogers dançam em palco exibindo os passos da ilusão, assim como os encalhados da vida esperam no seu confortável maple o par ideal que os puxa para o encontro com o Paraíso. A sátira de Olga Roriz é contundente quando nos recorda a carta de um desertor, da autoria de Boris Vian, interpretado por Maria Cerveira, enquanto Pedro Santiago Cal vai atirando com flores para trás das costas. E esta imagem forte, de uma realidade brutal entra em confronto com a canção de amor My Funny Valentine, interpretada também por Maria Cerveira. Uma canção perante a qual se sente a entrega de um coração apaixonado, esperando uma resposta em conformidade. Às vezes essa resposta é artificial, como o são os paraísos, como o são os fetos disfarçados de palmeiras. Mas a música continua, assim como a esperança. A esperança é a única centelha que faz com que a cantora inexperiente receba uma humilhação desmedida, ao ponto de ficar encharcada e continuar a dançar. Contrastando com a imagem da rapariga humilhada pelo seu par assume-se a ideia de felicidade quando os bailarinos deslizam alegremente nos seus confortáveis sofás, poiso de figuras teatrais que sorriem promovendo o paraíso e de figuras etéreas, mostrando ao mesmo tempo como é fugaz.
Um dos momentos marcantes de todo este Paraíso revela-se na dança sensual entre duas bailarinas, executando um tango assumidamente como mulheres. Ambas de vestido preto e elegante, de saltos altos, rodopiam ao som de um tango, ultrapassando um dos ideais convencionais do relacionamento heterossexual: na dança, como na vida, há um que domina e outro que é dominado. Assim como é tocante o solo que Pedro Santiago Cal desenvolve dançando à volta de um poste, trocando os papéis convencionais.
Porém, a ousadia e a provocação atingem o auge na canção de Ana Carolina Homens e Mulheres, interpretada por Catarina Santana. A atitude da bailarina é provocadora e no palco desenvolve-se um misto de encontros e desencontros pouco convencionais. Quando se ouve “eu gosto de homens e de mulheres. E você o que prefere?” o nosso olhar convencional desliga e começa a perspectivar noutras direcções. Por fim a bailarina abate-se ao cantar o tema Bang-Bang, imortalizado por Nancy Sinatra no filme Kill Bill. E permanece exposta e derrotada no seu vestido lamé até ser expulsa do paraíso.
O final é o fechar de um ciclo. O homem regressa pelo seu próprio pé e senta-se confortavelmente a tocar o pequeno acordeão. Depois de uma passagem pelo Paraíso o regresso à música genuína, à vida. O regresso, enfim, à imortalidade.
Com desenho de luz de Celestino Verdades, arranjos musicais de Renato Júnior e cenário de Olga Roriz e Pedro Santiago Cal, este Paraíso envolve o espectador numa viagem iniciática onde se confronta com o seu próprio desejo e regressa à vida transportando novas emoções. Um tributo à vida. Plena e condimentada de vários aromas.

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