Monday, October 27, 2008

Criar universos


Carolina Marcolla, actriz argentina que faz parte da companhia de Teatro Panda-Pá, convidou o jovem público da Biblioteca Municipal Ramos Rosa para a seguir numa viagem através das emoções conquistadas pela leitura. A actriz surgiu por detrás da plateia, carregando uma mala de viagem, da qual ecoava uma melodia. Carolina diz que adora viajar por entre as paisagens que os livros lhe sugerem. Abre a mala de viagem e dela retira um livro. Um livro muito antigo e que nos conta uma história tão bela quanto triste. Então Carolina começou a contar. Falou dos ódios ancestrais e irracionais havidos entre duas famílias poderosas na cidade de Verona. Falou de uma baile de máscaras que uma das famílias ia dar e de um convite trocado que foi para às mãos erradas. Por causa desse engano um Montéquio entrou na casa de uma Capuleto. E cumpriu-se o destino: “Foi exactamente à meia-noite, quando as damas e os cavaleiros formaram um círculo para a última dança, que um jovem alto, belo e gentil deu a mão a uma linda menina. Ele era um desconhecido mas Julieta ficou completamente hipnotizada pela sua beleza. Ela olhou-o e disse com doçura: A tua mão aquece a minha. E ele respondeu: e os teu olhos incendeiam o meu coração… Como te chamas?, perguntou ela com um belo sorriso nos lábios. Romeu, respondeu ele. E foi assim que Julieta e Romeu se apaixonaram, por entre as cores do Carnaval.” Toda esta narração aconteceu pela voz da personagem da ama de Julieta, que Carolina entretanto vestiu através da colocação de uma máscara balinesa. A voz, a postura, a emoção, mudaram por completo. O figurino estranho de alguém que recupera roupas de muitas viagens ganha outra dimensão com a colocação de um chapéu de palha de tom cobre e de uma máscara de velha usada no Bali. De repente o público vê a história através do sofrimento de uma velha ama que ajudou a criar a jovem apaixonada, morta por amor. A ama, sem nome, identificada apenas pela tarefa, fala de Frei Lourenço, o frade que tomou parte na conspiração e os casou em segredo, com mágoa e alguma amargura. Porque foi das mãos do frade que Julieta conseguiu o misterioso líquido que a pôs como morta. Mas é com uma luz especial que descreve o amor surgido entre os dois: Amor à primeira vista, puro e verdadeiro. O ritmo da narração muda e a actriz evita os clichés da passagem de uma jovem a uma mulher idosa. Há uma fluência diferente mas a mulher mais velha não deixa de ter clareza na narração nem adquire alguns “tiques” com que os mais jovens brindam os mais velhos. Há apenas uma maior dificuldade em controlar a emoção quando fala na sucessão de desencontros que levaram Julieta e Romeu à morte. De vez em quando a actriz esconde-se atrás da mala de viagem, onde cabe todo um universo, e mergulha noutra personagem. Ou é a contadora, ou integra a personagem da ama, passando assim de um plano para-teatral para um domínio plenamente teatral. E tudo é feito dentro do ritmo exacto, de uma contenção do gesto absolutamente admirável. O corpo da actriz irradia uma harmonia espantosa, recorrendo aos movimentos orientais do Tai-Chi, à medida que a história vai evoluindo. Depois da história acabar, com Julieta morrendo de desgosto sobre o corpo de Romeu, Carolina mostra um livro de belíssimas ilustrações, com texto de Nicola Cinquetti baseado na narração de Luigi da Porto, publicada em 1532. Lembra que Shakespeare a reescreveu com muitos mais pormenores sangrentos em 1594. Estimula a leitura e conversa sobre a história, sobre a capacidade de se morrer por amor, sobre o sentido de “família” em Itália, sobre as histórias que continuam a fazer-nos provar uma pouco mais do tempero da vida e a alargar os horizontes da infinita procura do ser humano. Por isso, contar um conto é aumentar o universo de sentido que existe em cada um de nós. Expandi-lo, com a vantagem de sabermos que neste universo específico não há retrocesso. No final a actriz fecha a mala e sai do palco acompanhada de sons e cores. Na plateia ficou a vontade de a acompanhar para outras paragens por entre os sons diferentes e as cores quentes.

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