Wednesday, October 15, 2008
O Limiar da escolha
Um momento de teatro inesquecível foi o que nos proporcionaram as actrizes Manuela Maria e Sofia Alves. Um sopro de génio que deixou uma plateia sufocada pela inquietação.O Teatro Municipal de Faro levou a cena o espectáculo Boa Noite Mãe, de Marsha Norman, com encenação de Celso Cleto, com Manuela Maria e Sofia Alves. O argumento deixa o espectador envolto em múltiplas questões que continuam sem resposta. Será legítimo uma pessoa renunciar voluntariamente à vida? E será legítimo alguém impedir uma pessoa idónea de intentar contra a sua própria vida? Estas questões invadem o espectador desde os primeiros momentos do espectáculo. Sofia Alves interpreta uma mulher adulta, Jess, que decidiu voltar a viver com a mãe, interpretada por Manuela Maria, depois de se ter separado e do filho a ter deixado. Com o peso da epilepsia a persegui-la ao longo da vida Jess apercebe-se de que nunca poderá ser autónoma. Não consegue manter-se num emprego, culpabiliza-se por não ter sabido manter o filho em casa, dentro de um percurso normal e vê-se para o resto da sua existência numa relação de interdependência com a mãe. Manuela Maria interpreta uma mulher que viveu uma existência de submissão mas que finalmente tomou as rédeas à sua vida. Tem uma relação de completa dependência da filha, que, não obstante, oprime com as suas constantes exigências. Jess olha para a vida com um olhar lúcido e percebe que aquela existência vazia nunca irá mudar. Então, durante meses planeia o suicídio. Faz listas intermináveis sobre os mais ínfimos detalhes da vida quotidiana para que a mãe não se esqueça de nada. O mais paradoxal é que Jess anuncia friamente à mãe que está decidida a acabar nessa noite com a sua vida. Porque já não aguenta o seu sem sentido, porque está saturada de ser refém de uma doença que a ataca quando menos espera. A mãe ao princípio pensa tratar-se de um sentido de humor menos ortodoxo mas aos poucos convence-se de que a intenção da sua filha é séria. A perplexidade de Thelma é incompatível com as explicações lógicas e frias de Jess, antecipando o suicídio anunciado. Ao longo do espectáculo, que dura cerca de duas horas, a conversa entre mão e filha tem picos de encontro e de distanciamento. Percebemos que o casamento dos pais de Jess foi uma mentira e que ela tinha uma verdadeira adoração pelo pai. Como todas as raparigas na sua situação cresceu com o sentimento de que a mãe não entendia o pai e que não merecia o seu amor. Pelo seu lado, a mãe tinha ciúmes da cumplicidade que o marido criara com a filha. Viveu entre dois mundos, coabitando com a doença mental, sem a compreensão ou o afecto de nenhum. Talvez por vingança de todo esse sofrimento revelou à filha que o ex-marido a tinha deixado por causa de outra mulher, facto que a filha ignorava. E este tipo de encontros e desencontros entre mãe e filha, lembrando o monumental texto Sonata de Outono, de Ingmar Bergman, são arquetípicos dessa relação específica. Quando a ansiedade e a depressão são realidades com as quais se tem de viver certas revelações, como a convivência com a epilepsia desde os cinco anos, podem ser demolidoras. Então por que é que Thelma revelou à filha Jess verdades terríveis, segredos guardados, na noite em que esta lhe comunicou a intenção de se suicidar? Por maldade? Não, simplesmente porque é assim a natureza humana. Daí ser este texto tão catártico, daí a autora ter ganho o prémio Pulitzer, daí ser tão hediondamente belo. A mãe tinha de revelar verdades cruéis à filha, apesar de não querer que esta se matasse, porque estava na sua natureza. Não foram estas revelações que impulsionaram a vontade de suicídio de Jess, mas também não foram elas que a detiveram. Apenas a tornaram mais consciente da sua determinação. Jess acaba por cumprir a sua palavra perante a impotência da mãe e todos nós nos sentimos impotentes face àquela escolha. E a dúvida manifesta-se e continua a inquietar: será legítimo? É este tipo de inquietação que a Arte em sentido lato e o teatro em particular pretendem incutir no espectador. Para promover melhor essa inquietação muito ajudou a brilhante e surpreendente interpretação de Manuela Maria. Que voz, que presença, que interpretação! Conseguia provocar humor e dor em instantes quase simultâneos. Sofia Alves esteve também à altura de uma grande actriz, revelando o lado obscuro de uma alma atormentada pela doença mental. A cenografia naturalista de Raquel Pinheiro ajudou a manter as actrizes durante cerca de duas horas em cena praticamente sem pausas. No final, o público que aplaudiu entusiasticamente de pé as duas actrizes e que quase lotou o Teatro das Figuras irá certamente voltar ao teatro.
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