Wednesday, July 2, 2008

Jus ou a solidão da justiça


Todos temos uma ideia do que é injusto. Mas o que será realmente a Justiça? Desde as reflexões elaboradas pelos pensadores no berço da civilização que o Homem se depara com esse problema elementar: o que é a Justiça? Pedro Monteiro e Rita Neves debruçaram-se sobre esta questão e com base em três textos, Revisão do Processo de Cristo, de João Luis Rodrigues Gonçalves, da Condenação de Galileu Galilei e de Um Padrinho Americano, construíram a ideia de um espectáculo. Esse espectáculo foi concebido também a partir de testemunhos de gentes oriundas de meios pequenos, como Cachopo e a Ilha da Culatra, e de presos que estão a cumprir pena no Estabelecimento Prisional de Faro.
O espectáculo começa com imagens de um filme a preto e branco, realizado por Pedro Pinto, acompanhado por sonoridades criadas por Gustavo Brandão, Arménio Mota, Manuel Guimarães e Luísa Brandão. A sincronia entre a imagem e o som, criando momentos de pausa, simbolizando as aporias que amiúde existem nos processos judiciais. O filme apresenta testemunhos de pessoas simples, oriundas de espaços concretos e isolados, que fazem a sua crítica à justiça e aos supostos justiceiros. Segundo os autores do projecto, “A história está cheia de reabilitações pos-mortem: Joana D’Arc, Giordano Bruno, Galileu, Baudelaire... Estas reabilitações vêm confirmar que o acto de julgar o outro, obedecendo às regras de um tempo, pode parecer justo apenas naquele instante, e mesmo assim não para todos...” Um repto à reflexão sobre o conceito de Lei, universal e intemporal. Há testemunhos tocantes de homens que estão a cumprir penas pesadas por pequenos furtos, mas também há os que se sentem mais seguros intra muros prisionais do que em liberdade.
Os actores André Canário, António Salvador e Pedro Monteiro entram em cena depois dos populares terem manifestado a sua descrença na justiça dos homens. António Salvador entra em cena enunciando a sentença de Cristo. Pedro Monteiro e André Canário entram funcionando como contraponto ao discurso do acusador. A indumentária de cor preta é completada por uma toga de juiz, que não se circunscreve a um actor. A cena muda e António Salvador passa a toga a André Canário que passa a encarnar um justiceiro que pretende emendar a justiça feita nos tribunais a quem não se sentiu recompensado moralmente pelas ofensas sofridas. Depois de termos ouvido, em voz off, a sentença de três anos de pena suspensa atribuída a dois violadores conseguimos entrar em sintonia com a dor de um pai que considerou não ter sido feita justiça. Segue-se uma das cenas fortes do espectáculo em que, num autêntico jogo de espelhos, o pai da jovem molestada se dirige ao padrinho para que justiça seja feita. Num texto onde ardilosamente se expõem as falhas do sistema judicial, os actores não se olham frontalmente, falando, contudo, uns para os outros. Jogando às cartas, o padrinho humilha o desafortunado pai, que se rende ao poder da influência e que ultrapassa a justiça dos homens. O homem entra no jogo, prometendo fidelidade eterna ao padrinho em troca de uma justiça de Talião. Os olhos cruzam-se mas não se olham, sendo o público o destinatário da súplica. A toga muda de ocupante mudando a cena para a época obscurantista de Galileu. A partir de extractos do texto de Bertold Brecht assistimos a passagens do processo do corajoso investigador que recolocou a Terra no sistema solar assumindo o heliocentrismo. Este foi um dos polémicos processos históricos, do qual a Igreja se retratou recentemente. É ainda actual a discussão sobre a pertinência da negação que Galileu assumiu, perante o tribunal inquisitorial, de toda a sua vida científica. O senso comum afirma: triste Terra que já não tem heróis, ao que Galileu responde: triste Terra que ainda precisa de heróis. Será a obra de um homem mais importante que a sua própria vida? Galileu sobreviveu ao julgamento e com ele subsistiu uma obra mais vasta que chegou até aos nossos dias. A expressão corporal é o símbolo que se abre em escrita e em fala. O corpo transforma-se em banco, e a face agitada pela negação mostra o sino vitorioso da inquisição.
Com economia de meios, apenas com a caixa preta, os figurinos neutros e a força da interpretação dos três actores e dos testemunhos das gentes simples Rita Neves conseguiu elevar este espectáculo a uma categoria de simbolismo que desoculta o que ficou por dizer pelas palavras. Apesar do texto, o corpo foi o grande intérprete deste espectáculo. O corpo dos actores e os olhos magoados pelas agruras da vida dos outros protagonistas: os que habitualmente não têm voz porque são simples e genuínos.
O espectáculo irá percorrer os locais onde foram feitas as filmagens, ou seja, no Estabelecimento Prisional de Faro, em Cachopo e na Ilha da Culatra e, esteja onde estiver, irá merecer a pena vê-lo, ou revê-lo. E reflectir.

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