Os nomes sonantes dos grandes dramaturgos podem soar de forma assustadora para algum público mais jovem e ainda desconhecedor, que busca no teatro uma forma de entretenimento e uma certa panaceia para as suas vidas. Perguntam amiúde: “O que é que eu posso encontrar de interessante para a minha vida numa peça de um autor clássico?” o desafio é convidá-los a arriscar e procurar a resposta na sala de espetáculos. Nuno Cardoso encenou os texto As Três Irmãs, de Tchekov numa perspectiva contemporânea, fazendo uma leitura política da situação em que o país se encontra. Segundo a produção, “Depois de “Platonov” (TNSJ, 2008), o fulgurante primeiro ensaio, inacabado, caótico, tido como irrepresentável, da obra teatral mais estruturante do drama moderno, e de “A Gaivota” (Ao Cabo Teatro/ TNSJ/CCVF/Teatro Maria Matos/Teatro Aveirense, 2010), uma espécie de espelho vertiginoso onde o Teatro se serve de si próprio para ensaiar uma reflexão sobre o paralelo entre vida e criação, Nuno Cardoso encerra a sua trilogia tchekhoviana com “As Três Irmãs”, metáfora do sonho destruído pelo tempo que passa, drama imbricado da decadência de uma classe dominante cuja fixação infantil na felicidade dos “tempos de antanho” esconde mal a ausência de horizonte e a perda de sentido. Reexercício de uma metodologia de trabalho que prolonga e aprofunda a ideia de ensaio, tomando o repertório e uma dramaturgia material, física, descoberta com o corpo, enquanto pontos de partida para o livre desenvolvimento das linguagens de criadores cujo trabalho conjunto parece exponenciar as qualidades de cada um.”
Em “As Três Irmãs”, Olga, Macha e Irina vivem um quotidiano banal numa pequena cidade dos confins da Rússia, enquanto sonham com o regresso à Moscovo natal. Nestes tempos de crise, quando a nostalgia daquele momento em que “éramos felizes e não sabíamos”, repetindo a formulação de Pessoa, paira como uma ameaça, importa saber onde fica a nossa Moscovo, importa compreender porque é que o sonho não se torna motor de futuro. Importa redescobrir o Teatro como ensaio de nós próprios e como alternativa ao consumo cultural de massas que apenas prolonga a submissão.
O texto presta-se a um tratamento que evoca a perda, o desencanto, a necessidade de começar de novo. O equilíbrio instável da vida, tal como nos sugere a cenografia de F. Ribeiro, que coloca os atores numa plataforma com dois declives, onde as personagens se têm de viver com todas as dificuldades que o plano inclinado implica. Olga, Masha e Irina apresentam-se a contra luz, estáticas, ao som do violino tocado pelo irmão. É o tempo da felicidade. O tempo em que eram felizes sem se aperceberem do quanto. Cada uma absorve uma cor. Olga a profundidade do azul, Masha o luto pela vida infeliz que se obrigou a viver e Irina assume o branco e a despreocupação da juventude. Masha esvazia o sonho através de balões que esvoaçam. Irina corre despreocupada e feliz. Olga entra no jogo e na brincadeira da irmã mais nova e corre atrás dela. Têm a vida à sua frente e são felizes. Os convidados chegam e mimam-nas com os seus galanteios e presentes. O irmão anuncia-lhes que está apaixonado e que irá casar em breve. A cunhada, cuja cor é o vermelho, é o elemento que irá provocar a instabilidade inerente. Incita o marido a mudar rotinas, procedimentos, em prol de uma melhoria das suas condições de vida. Recusa-se a receber os convidados boicotando uma festa, obriga Irina a mudar de quarto, incita Olga a despedir a ama, propõe serrar as árvores que sempre embelezaram o jardim. Ao longo de todas estas mudanças forçadas as três irmãs mantêm um sonho: ir para Moscovo. Mudar de vida e serem finalmente felizes. Só que a vida já as confrontou com os dias de felicidade e as três mulheres tornam-se amargas e cada vez mais desalentadas com a vida. Vão-se despindo de juventude e fulgor e arrastando a sua vida infeliz pela casa, onde são indesejadas. A páginas tantas são espectadores do seu próprio drama sem nada conseguirem fazer para o mudar. As três irmãs nunca conseguirão ir para Moscovo. Olga não se casa, Masha renuncia à sua paixão e Irina deixa de rodopiar e de sonhar em mudar para outra cidade. A encenação de Nuno Cardoso é simplesmente deslumbrante, conseguindo tocar no âmago do texto de Tchekov através das movimentações dos atores, dificultadas pelo plano inclinado e afinadas pela iluminação de José Álvaro Correia. Olga, Masha e Irina sucumbem de cansaço e tédio às exigências da cunhada Natacha e à apatia do seu irmão André. E, no fundo, é esta a lição de vida que Tchécov nos quer dar: a vida não se transforma por si só, temos de ser donos da nossa vontade e termos a coragem de mudar o nosso destino. Irina desejava sair da sua vida de burguesa e começar a trabalhar. Quando o conseguiu deixou-se domar pela rotina, pela amargura e começou a tratar mal as pessoas que recorriam aos seus serviços. Masha não conseguiu que o oficial por quem estava apaixonada deixasse a sua mulher louca e assumisse a paixão por ela. Olga esqueceu-se de viver, entregando toda a sua alegria à escola e ao seu lugar de diretora. No final deixam-se ultrapassar por Natacha mas percebem que estarão sempre juntas e que, por muitas voltas que a vida dê, há uma vida que pode ser mudada. Nesta encenação vemos o Teatro como uma antecipação do espetáculo da nossa vida e como um aviso relativamente à aceitação das condições que nos impõem. Juntas, podem redescobrir a sua Moscovo e refazer o sentido de felicidade. Com Daniel Pinto, Isabel Abreu, João Grosso, José Neves, Luís Araújo, Manuel Coelho, Maria Amélia Mata, Sara Carinhas, Sérgio Praia, Vitor D’Andrade, Micaela Cardoso e Tonan Quito, esta encenação de Nuno Cardoso foi uma lufada de ar fresco nos cenários por vezes insípidos das propostas correntes. E hoje, ainda haverá espaço para Tchekov? Provavelmente hoje, mais que nunca, urge ouvir Tchekov e revisitá-lo pela mão de encenadores lúcidos, como Nuno Cardoso.
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