Monday, August 8, 2011

Diplomatas da cultura


Na cultura está a cumprir-se o sonho antes preconizado pela economia: o sonho de uma Europa unida nas suas diferenças, respeitando as idiossincrasias de cada povo, partilhando o mesmo ideal. Esse sonho foi cumprido com a produção “A Tempestade”, um projeto de teatro multilingue que apela aos grandes valores de uma Europa moderna e civilizada: liberdade, igualdade, fraternidade e, finalmente, a dádiva do perdão. A Tempestade, tradicionalmente considerada a última peça de Shakespeare, é uma reflexão sobre o colonialismo, o choque de culturas, a traição e o perdão. Próspero, ilustre duque de Milão, é traído pelo próprio irmão que lhe usurpa o ducado, expulsando-o com a sua filha ainda criança, para uma ilha longínqua. Na ilha confrontam-se com uma criatura da Terra, Caliban, interpretado magistralmente por Mário Spencer, a quem Próspero, interpretado por Luís Vicente, se dedica, ensinando-lhe as palavras e as maneiras do seu país. Mas Caliban, ser lascivo e instintivo tenta profanar a pureza de Miranda, interpretada por Tânia Silva, filha de Próspero, recebendo assim todo o seu desprezo. Por outro lado, outra criatura dos ares, assexuado e etéreo, Ariel, submete-se ao poder de Próspero, que homem letrado, consegue manipular por artes mágicas a criaturas diferentes. Caliban, filho da temível feiticeira Sycorax, é disforme e obstinado, longe do ideal do “Bom selvagem”. Revolta-se pelo facto de ter sido subjugado ao poder de um náufrago que ali aportou e lhe usurpou o domínio da ilha que era sua por direito. Caliban, anagrama de canibal, é o retrato do selvagem insubmisso que se recusa a assumir as regras de alguém que chega e, valendo-se da sua pretensa superioridade cultural, lhe quer impor um outro mudus vivendis. Miranda é o pretexto para a ruptura e para a subjugação do escravo ao senhor. Luis Vicente mostra a dignidade de um duque culto e erudito em todo o seu esplendor.
Através dos seus poderes mágicos Próspero ativa uma tempestade que atira para a ilha os seus traidores. O seu irmão António, Alonso rei de Nápoles e seu irmão Sebastião e Gonçalo, um conselheiro honesto. Desta comitiva fazem parte também um copeiro bêbado e um bobo da corte, as típicas personagens para exercerem o alívio cómico necessário num texto com características trágicas. Fernando, filho do Rei de Nápoles, naufraga também na ilha, sem que seu pai o saiba. É manipulado por Próspero no sentido de se apaixonar por Miranda, pela qual faz todos os sacrifícios.
Pela mão do copeiro bêbado e do bobo da corte Caliban conhece os segredos do néctar de Baco, devotando todo o seu labor a Estefânio, acabando todos enganados pelas quinquilharias criadas pela magia de Próspero. O final, surpreendente nos textos de Shakespeare, remete para uma reconciliação e para o poder do perdão, que se sobrepõe à vingança. Assim, Alonso arrepende-se da sua traição e, como prémio, revê o seu filho que julgava morto. Acolhe Miranda e a peça acaba de forma cordata e pacífica. A ilha é entregue de novo a Caliban e todos partem para Itália, aproveitando os ventos favoráveis, embalados na ideia segundo a qual “somos feitos da mesma matéria dos sonhos”.
Ao nível da produção verificou-se um equilíbrio entre os diversos atores, mostrando que a produção nacional está ao nível dos seus congéneres europeus. A cenografia de Jean-Guy Lecat evidencia por um lado o poder de um soberano numa ilha praticamente desabitada e, por outro, a solidão que lhe assiste. O imponente rochedo cinzento roda na sua solidão, recebendo com sobranceria os incautos náufragos. E, se bem que todo o elenco cumpriu de forma equilibrada a essência da mensagem de Shakespeare, temos de salientar a diferença pela positiva dos atores portugueses. Luis Vicente fez justiça ao sentido latino da arte e mostrou um Próspero apaixonado e ardente, que arrebatou o espetáculo. Mário Spencer assumiu um Caliban não propriamente disforme mas suficientemente diferente para provocar inquietação nas consciências que exercem a supremacia cultural perante os outros povos. Tânia Silva desempenhou uma Miranda frágil e ansiosa por conhecer novos mundos e novas culturas. Recusando a mistura com Caliban mostra-se, no entanto, ávida de conhecer outros elementos da espécie humana. Carlos Pereira interpretou um voluptuoso Ariel, divertido e, apesar de etéreo, sensual. Este foi o elenco português que deu a conheceu ao centro da Europa o bom teatro que se faz no Sul. E todos nós nos podemos orgulhar destes diplomatas da cultura e do teatro.

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