Sunday, August 14, 2011
Antígona em Mérida: um deleite para os sentidos
Como em Agosto os espetáculos de teatro escasseiam no Algarve, os amantes desta arte, que até estão mais disponíveis para refletir sobre textos mais complexos, porque estão de férias, têm de se meter ao caminho e procurar fora da região aquilo que por cá não existe. E o destino, de há uns anos a esta parte, tem sido a cidade espanhola de Merida. A 400 quilómetros de Faro, sem portagens, Merida é, nos meses de Julho e Agosto a capital do teatro clássico. Este ano, a consagrada atriz espanhola Blanca Portillo foi nomeada diretora do Festival. Pela primeira vez em 57 anos este Festival Internacional de Tema Clássico foi dirigido por uma mulher, e como mulher, Blanca Portillo acredita profundamente nos valores do feminino. Daí este ano o festival girar em torno da figura feminina, possibilitando assim uma homenagem a esse universo feminino onde, nas palavras de Blanca Portillo, prima o sangue, a força das emoções, a luta pela paz, a energia da terra perante a ordem, a luta pelo poder e a racionalidade do mundo masculino”. Este ano foram apresentadas em Merida três versões da Antígona. A primeira, Antígona de Merida, de Miguel Murillo, recorda Mérida no ano de 1936, quando as tropas nacionais entram em Mérida. Uma jovem atriz quer recuperar o cadáver do seu irmão morto em combate. A segunda, a Antígona do séc. XXI, mostra os desafios da mulher atual procurando interpretar os mitos clássicos.
Antígona de Sófocles foi revisitada por Mauricio García Lozano. O encenador assumiu o texto integral de Sófocles, evidenciando os conflitos patentes nas várias dicotomias clássicas – homens contra mulheres, jovens contra velhos, indivíduos contra a sociedade - convidando o espetador a fazer uma nova leitura dramatúrgica através das coreografias de Ronald Savkovic.
O espectáculo começa com Antígona desocultando um pequeno piano de criança. Toca umas notas dispersas e é interpelada pela irmã. Discutem sobre a lei de Creonte e Antígona decide resolutamente enterrar o irmão. Saem de cena e entram de rompante dezenas de jovens raparigas correndo pela cena, felizes e envergando uns vestidos diáfanos. Depois entra o coro, protagonizado por homens brutos, guerreiros acabados de chegar de uma guerra, que com a sua força bruta destroem a fragilidade e a beleza das raparigas, assassinando-as. Depois dos ritos fúnebres devolvem-nas ao mundo subterrâneo, o mundo dos mortos, onde permanecem quietas, quais espíritos das águas profundas. O conflito entre a lei dos homens, simbolizada por Creonte e a lei da tradição e do respeito à família, simbolizada por Antígona faz-se sentir ao longo de todo o espetáculo, tendo o seu ponto alto no confronto direto entre as duas personagens e na discussão entre Hémon e seu pai, Creonte. Antígona decide morrer e fica sozinha, fechada na sua solidão. Nesse momento o anfiteatro romano é envolvido por uma cobertura prateada, que exalta a figura de Antígona, mostrando que não quer o mal de ninguém não quer desrespeitar a lei, mas há obrigações que os vivos têm para com os seus mortos. Quando vai para a tumba enverga um magnífico figurino, misto de vestido e jaula, caminhando resolutamente para a morte. Quando chega à beira da entrada para a morte, na boca de cena, deixa-se cair para os braços das deusas subterrâneas que a esperam na orquestra, transformada num tanque com água. Nessa dimensão do Hades Antígona é libertada de todas as cadeias, despindo o vestido prisão. Torna-se numa divindade dos rios subterrâneos envergando uma veste diáfana e contribuindo para o bem-estar daquele mundo. No mundo real Creonte acaba sozinho, fechado no seu palácio, ajustando contas com os mortos que foram proliferando à sua volta e Antígona menina volta à cena inicial, tocando no piano as notas que recordava da infância, dos tempos de cumplicidade com o irmão. A este texto maior da história do teatro juntaram-se as coreografias contemporâneas de Ronald Savkovic. Fortes e cruéis, quando mostrava o universo masculino e etéreas e ofuscantes quando desocultava o universo feminino. Foi sobretudo através da gestão dos corpos que o espetáculo mostrava as dicotomias primordiais. Um dos momentos altos do espetáculo foi a entrada de Tirésias, interpretado por Blanca Portillo, que de forma notável deu ao adivinho a dimensão ambígua quanto à sexualidade, anunciando friamente a Creonte que “não demorará muito tempo que surjam no teu palácio gemidos de homens e de mulheres”. O mensageiro da desgraça não demora a ver cumpridas os seus augúrios e, numa cidade cheia de mortos, o espírito do amor eleva-se e vence sobre o ódio. Portentoso, tanto na interpretação, sobretudo de Blanca Portillo e de Antonio Gil, como na encenação e na música original. Foi pena as ninfas não terem assumido a nudez de forma integral quando descem ao mundo subterrâneo, assim como a figura de Antígona perdeu muito quando ao ser-lhe retirado o vestido não expôs a sua nudez de forma liberta e adulta. Na estreia houve alguns problemas técnicos que não imperiram, todavia, que as cerca de 3000 pessoas que quase lotavam o anfiteatro aplaudissem entusiasticamente de pé esta produção que, certamente ficará na memória. Mesmo com uma noite cuja temperatura não baixou dos 30 graus, o público seguiu atentamente o espetáculo, rendendo homenagem no final a toda a equipa que o protagonizou e produziu.
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