Monday, August 8, 2011

Casamento em jogo


Casamento em Jogo, de Edward Albee, foi a proposta do Teatro da Trindade para o início da época estival. Encenado por Graça P. Corrêa conta com a participação de Rogério Samora e Cucha Carvalheiro. O texto, na boa tradição de Edward Albee tem um vetor satírico, abordando a realidade crua de um casamento de 30 anos, desgastado pela rotina e pela falta de aventura. Edward Albee, um dos dramaturgos que a ACTA trabalhou em 2000, com o texto Zoo Story, mostra a realidade de uma forma amarga, pincelando-a de uma ironia quase macabra. Se na sua primeira e brilhante peça de teatro, Zoo Story, a ação era protagonizada por dois homens desconhecidos, sendo um deles um sem abrigo, no texto Casamento Em Jogo o enredo submete um casal da classe média alta a um jogo de avanços e recuos verdadeiramente notável. A cenografia deslumbrante de Ana Vaz ajuda o espetador a entrar na intimidade requintada daquele casal. Um enorme estante de livros, jornais no chão, um belíssimo candeeiro de tecto, e espaço, muito espaço a mediar os sofás, protegidos por um majestoso cortinado vermelho que se impõe na cena. O espetáculo começa com a mulher deitada no sofá, lendo qualquer coisa que a faz soltar algumas gargalhadas. Momento depois chega o homem, pousa as chaves na mesa, a pasta na cadeira e diz: “Vou deixar-te”. Aquela frase, lapidar para a maior parte das relações, não parece surtir efeito na mulher que desdramatiza, perguntando-lhe se teve um dia mau. O homem insiste naquilo que diz ser a sua pretensão e, para ser levado a sério decide repetir a entrada. A mulher, uma vez mais, ironiza, encolerizando-o. O homem, desesperado por ser levado a sério, repete a entrada quatro vezes, levando a que a mulher proponha a instalação de uma porta giratória, mas que funcione a moedas, para poderem ganhar alguns trocos enquanto as entradas não se tornam perfeitas e triunfais. Na última entrada a mulher revela ao homem que estava a ler um livro escrito por si e que ainda não tinha sido editado, o que causou um enorme espanto no seu companheiro de 30 anos. Então depois de uma vida em comum ele descobre que afinal a sua mulher também escreve? Refeito do choque inicial, outro choque o espera: a sua mulher não só escreve, como escreveu um livro (O Livro dos Dias) sobre todos os seus momentos sexuais ao longo de 30 anos. Cerca de 3000. Estupefacto, o homem quer saber o conteúdo acerca do seu desempenho sexual. Ela lê-lhe algumas descrições. Umas são secas, com três ou quatro palavras. Outras mais profundas e poéticas, que ele ironiza, comparando a escritores norte americanos de relevo, como Henry James ou Hemingway. O jogo entre as personagens, interpretado de forma magnífica pelos atores, adensa-se e entre ofensas, contas com o passado, pedidos de desculpa e agressões físicas, o casal mostra o que tem sido a sua vida durante 30 anos. E, tal como na obra A Guerra dos Rosas, assistimos pelas descrições no Livro dos Dias, a um envolvimento terno e apaixonado, arrebatador que embevecia as pessoas que os olhavam. Ainda passeavam de mãos dadas aproveitando todas as oportunidades para descobrirem o corpo um do outro. Entretanto passaram 30 anos, criaram dois filhos e cometeram-se traições. Traições perdoadas tacitamente mas nunca esquecidas. Nunca apaziguadas pelo tempo, prontas a servirem de cavalo de batalha na primeira ocasião. O jogo oscila entre o “Vou deixar-te” e o “amo-te, sempre te amei e tu sabes disso”. Entre essas duas reflexões Rogério Samora e Cucha Carvalheiro oscilam entre uma ternura envolvente e uma violência levada quase ao limite. A noite acompanha as intensas e múltiplas variações do casal até que surge a manhã com a sua luz que rompe e invade os pensamentos mais sombrios. O homem afasta a cortina, vislumbra o jardim, e percebe que o seu lugar no mundo não é mudar de vida naquele momento. A sua missão é cuidar do jardim, uma vez mais. É cuidar de si e da sua relação, e daquela mulher que ao longo de 30 anos o amparou, resistindo a tudo por respeito e companheirismo. Aliás, é ela sempre quem conduz o homem ao longo da discussão. É ela quem coloca as cartas na mesa, quem dá o jogo e quem vence todas as partidas. O homem tenta dizer um discurso que elaborou muito bem no seu espírito, mas que resvala na dimensão daquela relação. Casamento em Jogo assume-se como um retrato das relações contemporâneas, vividas por homens e mulheres insatisfeitos e inseguros mas que se vão ajeitando um ao outro, como dois sapatos velhos se ajeitam à forma de andar dos pés que os calçam. Um momento de teatro notável protagonizado por dois atores de referência da nossa cena. Vale a pena dar um saltinho a Lisboa de quinta-feira a sábado e passar pelo Teatro da Trindade até dia 31 de Julho para apreciar este magnífico espetáculo.

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