Monday, August 8, 2011
Aventureiros já sem aventura
Uma procissão, uma mulher que remenda as redes de pesca. Um sentir trágico e carregado, homens vestidos de negro vigiando todos os movimentos. Este é o início de 1974, o espectáculo do teatro Meridional, encenado por Miguel Seabra sobre o ano da revolução do 25 de Abril. Um espectáculo onde o espaço cénico e os figurinos de Marta Carreiras, aliados ao desenho de luz de Miguel Seabra e à música de José Mário Branco assumem uma assinatura distintiva da qualidade. As crianças brincam despreocupadas enquanto são vigiadas por agentes da repressão. Deixam de poder brincar e têm de aprender a marchar, mesmo que as forças lhes fujam. A escola não é um sítio de aprendizagem mas de correcção e castigos. A vida dos adultos tem de se defrontar com uma vigilância mais apertada e a candura dos primeiros namoros contrasta com as detenções e com as partidas para a guerra. Comovente a cena em que os soldados se despedem das mulheres e partem para um destino incerto de onde podem não voltar. Os casamentos, as relações que têm por base um certo tipo de violência muito lusa surgem como um retrato social simbolizado pela música e pelos corpos que se tornam felizes ou amargurados. O edifício social está suspenso numas caixas que descem do tecto, como se fosse um armazém onde todas as emoções estivessem bem arrumadas. Há um momento em que todo esse edifício desaba e as caixas caem, provocando o caos com a sua libertação. O povo entra em euforia num momento de suspensão. Como se aquele momento de felicidade pudesse durar a vida inteira. Mas no momento seguinte, quando se pretende arrumar a casa começam os desentendimentos e as discussões. E assim se vai construindo um pais, aos solavancos e desordenadamente. Até que chega a hora dos políticos. A azáfama dos assessores a cuidar do espaço, os cidadãos ávidos a aplaudir e os discursos vazios e desprovidos de sentido. Brilhante essa caricatura de um país onde “houve aqui alguém que se enganou”. Depois dos primeiros tempos de alguma confusão após a mudança de regime deparamo-nos com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia e com o esvaziamento de sentido que os gestos assumem de uma forma cada vez mais alarmante. O consumismo, a indiferença perante alguém que sucumbe ao seu lado, as conversas vazias de sentido e as palavras vazias de conteúdo. Nas festas as pessoas mostram-se como figurinhas que valem pelo invólucro, assumindo uma pose dos tempos hipermodernos. O homem dos novos tempos assume-se de acordo com o mercado, o indivíduo e os avanços científico-tecnológicos. O símbolo da revolução de Abril, exposto num museu, é esvaziado do seu sentido primordial e confundido com uma obra de um artista contemporâneo. O cidadão conseguiu o seu direito ao voto mas é tratado de uma forma descartável. E num mercado comum, onde sempre quisemos pertencer, damo-nos ao luxo de negligenciar as opiniões de outros cidadãos que, como nós, foram à procura de “outras paragens, entre outros povos, onde o suor, se faz em pão”. Mas o apelo da mestiçagem é mais forte e a força da música consegue unir o que a política não permite. Aos som de vários batuques as pessoas de diferentes nacionalidade e diferentes credos dançam juntas até que restam os injustiçados, os perfilados no medo, os filhos bastardos da vida que continuam à espera, olhando o futuro, ansiando por dias melhores.
Toda esta história foi narrada com o corpo, com canções, com a luz e com a plasticidade da cenografia. As palavras foram parcas mas as estritamente necessárias para o desenrolar da acção. Miguel Seabra soube proporcionar um deleite para os olhos, um verdadeiro bálsamo para os sentidos, numa época em que sobram as palavras e o discurso de torna desprovido de sentido.
No final Miguel Seabra leu um poema de Alexandre O’Neill, que foi musicado por José Mário Branco, como uma mensagem a ter em conta nestes tempos difíceis: “Perfilados de medo / agradecemos o medo que nos salva da loucura. / Decisão e coragem valem menos / E a vida sem viver é mais segura. // Aventureiros já sem aventura, / perfilados de medo combatemos /
irónicos fantasmas à procura /do que não fomos, do que não seremos. /Perfilados de medo,/ sem mais voz, / o coração nos dentes oprimido, /os loucos, os fantasmas somos nós. /Rebanho pelo medo perseguido, / já vivemos tão juntos e tão sós / que da vida perdemos o sentido... Foi um momento intenso, cantado a capela, recordando a todos que o teatro ainda pode ser uma arma.
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