Sunday, July 1, 2012
O Aqui
Uma tela horizontal marca o palco do Teatro das Figuras. Um pano que corre de um lado ao outro do palco, ocultando, desocultando. Uma projecção de imagens subaquáticas conduz-nos a um universo distante, quase paralelo, dentro do qual os sentidos captam o real de forma diferente. Ouve-se o som de um coração a bater e a voz da Natália Luiza a falar-nos sobre o Tempo. A noção de tempo que acelera e desacelera de acordo com o olhar de cada um perante o mundo. O seu mundo. O pano corre e desoculta-nos imagens de pessoas que estão fixas numa posição. O pano volta a fechar, volta a abrir e as posições mudam, como se fossem instantâneos captados num instante em que se segura o Tempo. Num momento todos podemos ser iguais. No instante seguinte há formas diferentes de gerir o Tempo. E foi a partir da gestão dessa diferença que surgiu o espectáculo O Aqui, coreografado por Ana Rita Barata, que teve o apoio de uma excelente equipa de criadores que contém Natália Luíza na dramaturgia, Pedro Sena Nunes na direcção artística e imagem e João Gil na criação da música original.
O projecto da Companhia Integrada Multidisciplinar pretendeu criar um objecto artístico integrador com pessoas que sofrem diariamente do estigma da diferença e não fazer uma espécie de terapia através da dança. O resultado foi um espectáculo surpreendente e comovedor no qual os rimos dos diferentes intervenientes se adaptavam e criavam partituras coreográficas muito interessantes, com assinalável qualidade ao nível do movimento. A música, criada por João Gil, dava conta das mudanças de ritmo entre as situações e as personagens entre si, de forma harmoniosa e singular. O desenho de luz de Cristina Piedade soube criar uma atmosfera intimista que convida à partilha e à alegria de viver. Ao dançar a coreografia de Ana Rita Barata os intervenientes perdem o medo. O medo de não ter tempo, o medo de não conseguir enfrentar uma realidade que se tornou dolorosa. No espectáculo a dor deu lugar ao riso e ao movimento descontraído dos corpos que executaram composições a solo, a dois, em grupo, absolutamente notáveis. As cadeiras de rodas deslizavam pelo palco ou com pessoas a ocuparem um lugar em diversas posições. Todos os corpos se moviam, quer fosse por si, quer fosse por meio de um impulso exterior que lhes provocava uma capacidade motora que por vezes não possuíam de forma autónoma.
No final o espectáculo foi comovente e belo, promovendo uma miríade de sentimentos. Houve uma unidade na imensa diversidade de pessoas, objectos, tempos, ritmos, afectos, diálogos.
Composta por 13 pessoas, quatro bailarinos profissionais, dois técnicos da área da deficiência e sete pessoas portadoras de paralisia cerebral, a companhia tem recebido apoios do Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian (CPRCCG), da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL) e do Instituto de Inserção Social. Os bailarinos profissionais são António Cabrita, Carolina Ramos, Catarina Gonçalves e Pedro Ramos, os técnicos são António Paiva e Carolina Santos e os intérpretes da APCL e CRPCCG são Adelaide Oliveira, Jorge Granadas, José Marques, Maria João Pereira, Paulo Benavente, Sílvia Pedroso, Yete Borges e Zaida Pugliese.
Para a criação deste espectáculo, houve uma co-produção com o Teatro Municipal de São Luiz, a Vo´arte e com a co-apresentação do Teatro Camões.
O desafio maior foi conseguido. Neste espectáculo os intérpretes foram sentidos pelo público como artistas que se expressaram através de um suporte artístico, de um corpo, apresentando-o num espectáculo, apagando a imagem do portador de deficiência. Este equilíbrio é fruto de uma capacidade artística e de uma sensibilidade notável. Reflexivo e divertido, comovente e belo. Um prazer que inunda os sentidos e obriga a pensar.
Um Mozart de chocolate
E se num espetáculo de ópera os cantores interpretassem as suas árias, representassem o seu papel e ainda mimassem o seu público oferecendo-lhe comida? O público pôde encontrar esse tipo de interação na companhia Laika, que se destaca na cena artística com a criação de um Teatro dos Sentidos. Nos dias 8, 9 e 10 de Junho os claustros da escola hoteleira em Faro lotaram os lugares previstos para receberem o espetáculo Ópera Buffa que aliou uma ópera criada a partir da obra Dom Giovanni, de Mozart tocada ao vivo, com teatro e culinária. O público foi convidado a sentar-se em mesas corridas de madeira que se constituíam como plataformas desniveladas, possibilitando a passagem dos atores/cantores por cima delas ao longo do espetáculo. Com a participação da Orquestra do Algarve, os cantores apresentaram-se assumindo o chefe de cozinha a identidade de D. Giovanni, o famoso sedutor. D. Giovanni seduz a bela e inocente Zerlina, que sucumbe aos seus encantos, mau grado os sentimentos de Masetto, o seu eterno apaixonado. Os atores/cantores começam por servir aos convidados uma bebida à base de gengibre, limão e menta. A distribuição dos pratos, dos copos, dos jarros está cuidadosamente encenada de forma divertida mas rigorosa. Nem um dos convidados fica sem talher, nem uma das mesas fica sem todos os apetrechos. O público colabora e vai degustando alegremente o que lhe é dado ao longo do espetáculo. Depois da bebida rosada e apetitosa os cozinheiros preparam o estômago dos espectadores com um caldo de castanha polvilhado com amêndoa ralada. Por esta altura uma das primeiras raparigas seduzidas por Giovanni, Elvira, surge enfrentando com fúria o abandono do incorrigível sedutor. Elvira confronta Giovanni e nessa discussão as messas servem de estrados aos seis cantores que se posicionam em várias alturas, dando uma outra dimensão a uma das áreas da conhecida ópera de Mozart. O público tem de afastar os pratos, os copos, os jarros com a bebida, sob pena da fúria de Elvira deitar abaixo um copo mais incauto. Ao longo da ópera o público ia sendo servido pelos cantores, que surgiam dos mais inimagináveis lugares. Um risotto de legumes foi o prato principal, ao qual se seguiram profiteroles regados com chocolate. Para o molho de chocolate as cantoras provocaram o apetite dos espectadores com um ritual no qual se derretia o busto do infame sedutor, feito de chocolate, para um depósito. O chocolate líquido tornou-se o elemento comum desta refeição comungada pelo público. A cabeça de Dom Giovanni tornou-se num deleite para os sentidos de todos, percebendo-se finalmente a razão pela qual ela afirmava não poder ser fiel a uma única mulher sob pena de estar a trair todas as outras que o desejavam.
O espetáculo da companhia Laika, dirigido por Peter De Biee e Jo Roets cumpriu as expectativas, pois completou os prazeres dos olhos e dos ouvidos com um presente ao palato, culminando no chocolate, símbolo do desejo que se degusta e lambuza com prazer. O público aplaudiu entusiasticamente os músicos, os atores, os cantores e os cozinheiros pois, cada um na sua especificidade contribuiu para que o espetáculo enchesse de gozo artístico os sentidos. De facto, como prometido este espetáculo foi uma sumptuosa mistura de música, canto, teatro e chocolate. Uma palavra também de apreço e louvor aos alunos formandos da Escola Hoteleira do Algarve que, tendo confecionado toda a culinária do espetáculo, contribuíram para este caleidoscópio de prazeres.
Este foi mais um dos espetáculos da rede Movimenta-te que pretende estabelecer uma rede entre os municípios de Faro, Olhão, Loulé, S. Brás e Tavira, como lugar crucial de encontros e fonte de criação artística.
Uma voz universal
Carolina Cantinho apresentou no Teatro das Figuras a sua criação Outra Voz. Uma criação feitas de pedaços de vozes que se juntaram numa harmonia de corpos. Um trabalho excelente de uma jovem coreógrafa.
“Outra voz é uma voz coletiva. Uma voz sem palavras que se faz ouvir e sentir”. Este foi o projeto que Carolina Cantinho concretizou no Teatro das Figuras. Acompanhada por Beatriz Gonçalves, Filipa Cavaco, Joana Glória e Sophia Rosa Carolina Cantinho conseguiu traduzir o conceito de comunidade num jogo de corpos e vozes que se articularam de forma convincente. As cinco intérpretes cruzam o espaço claro do palco do Teatro das figuras fazendo-se acompanhar de um microfone com um longo fio que as liga ao exterior. Elas são as vozes que escutam do exterior; seja de uma menina de 8 anos, seja de uma mulher madura. As vozes invadem as bailarinas, que cruzam os fios e interpretam as emoções dos penitentes corpos que aguardam uma ligação ao corpo dançante. E as bailarinas ouvem a voz, sentem a emoção e traduzem-na em movimentos. Ora subtis, ora violentos, ora solitários, ora coletivos, esses movimentos são sempre a escrita de uma súplica que vem da outra voz: a voz comum. Como diz Carolina Cantinho, “ Através de uma linguagem universal, vencemos as barreiras da língua e falamos com as emoções”. As emoções são transfiguradas em movimentos efetuados com rigor técnico pelas cinco bailarinas. Os movimentos falam porque estas jovens intérpretes da dança os sabem fazer falar. E escutar. Em três momentos os corpos repousam e dão protagonismo a outros corpos projetados na tela. Os corpos de onde tudo partiu. Os corpos que pertencem aos detentores das emoções que clamam por serem escutados. Os vídeos de Artur Rosa mostram o processo de criação de vinte e dois intérpretes que participaram nas formações que originaram este trabalho. No espetáculo as bailarinas conversam com as vozes trazidas pelos microfones. Articulam-nos de acordo com a altura dos seus interlocutores, interagem com esses objetos até a voz exterior se tornar presente. Quando o público assume a presença de uma outra voz, os microfones deixam de se fazer sentir presentes e tornam-se numa presença latente, fora do tapete onde tudo se transforma. A cena é aberta, por isso o espetador ode observar os cinco microfones assistindo atentos ao desenrolar do espetáculo.
“O corpo é uma preciosidade física com o qual experienciamos a vida. A dança vem complementar essa experiência.” Carolina Cantinho afirmou. Os corpos, através de vozes que noticiam o quotidiano de um país em crise, confirmam. E foi importante que, a partir de vozes de cinco bailarinas, as notícias tivessem saído escorreitas, fluidas, mas também agressivas e cruéis. Essa crueldade de que também é feita a vida. Os movimentos foram pensados até ao ínfimo pormenor, permitindo às bailarinas dançarem em sincronia ou dentro da sua própria solidão, como acontece tantas vezes na vida. Por vezes a nossa voz encontra uma voz irmã, com a qual seguimos um percurso e, no momento seguinte, essa voz torna-se dissonante da nossa, divergindo, discutindo. Foi o que se verificou com a coreografia criada nesta Outra Voz: os corpos juntavam-se, separavam-se, havia encontros a dois, a três, até chegar a um encontro total que, não precisando de dançar em sincronia, se percebe numa harmonia das cinco intérpretes.
Neste trabalho percebe-se já uma assinatura de uma jovem coreógrafa que, tendo começado a dançar segundo a matriz tradicional, se emancipou, devolvendo à arte uma forma de pensar coerente e original. No final do trabalho as bailarinas foram buscar os objetos que os formandos desta outra voz levaram para dar algo mais de si. E entre peluches, óculos de mergulhador, sapatilhas de dança e chapéus Carolina Cantinho soube devolver aos seus colegas de criação a sua voz genuína. Este foi um projeto que partiu do trabalho com vinte pessoas de várias idades onde não se traiu a ideia do coletivo. Pelo contrário: a outra voz deixou de ser tímida e singular para se tornar numa voz harmoniosa e universal. Carolina Cantinho é, desde 2004, formadora em Iniciação à Dança e em Dança Contemporânea em várias escolas de Faro, bem como bailarina coreógrafa da Companhia de Dança do Algarve, tendo obtido vários prémios de interpretação tanto a nível nacional como internacional.
Luis Vicente - A Assunção de um actor maior!
Dia 27 de Março, Dia Internacional do Teatro, a ACTA estreou a sua mais recente produção. O espetáculo começa com a assunção de um prólogo que enquadra o espetador na estética e na lógica do espetáculo. Com base no conceito de espaço vazio, de Peter Brook, Luis Vicente apresenta o espaço, que se vai enchendo de significações. Apresenta a cadeira, único objeto cénico assumido e desprende-se do ator para assumir a personagem. Luis Vicente guarda os óculos no bolso do casaco cinzento e imediatamente o rosto, o corpo se transfigura. A braços com um texto de grande violência psicológica, Luis Vicente interpreta um homem, Miguel Torres que, tendo nascido num meio adverso, alcançou uma prosperidade reconhecida a nível social. Cavalo Manco Não Trota, de Luis Del Val, é um texto que apresenta um limite ético quando a vida nos coloca perante o monstro que foi criado por nós. Luis Vicente assume a personagem ao longo de uma hora e meia, prendendo a atenção do espectador. Perante a barra do tribunal, Miguel Torres dirige-se ao juiz, fazendo um percurso pela sua vida, desde a infância até ao momento crítico em que teve de assumir um ato fatal. Tudo na vida de Miguel Torres estava a decorrer de acordo com o que Miguel quis fazer dela. Este homem foi um exemplo de um ser humano que domou a vida à sua maneira. A vida pregou-lhe a partida mais cruel que um pai pode sofrer. E Luis Vicente, sozinho, põe-nos diante de um drama que confronta várias famílias. O flagelo da toxicodependência é uma chaga que afeta de forma impiedosa aqueles que os amam.
Do fundo do seu trabalho de ator Luis Vicente extravasa a simples interpretação para presentear o público com uma prestação de excelência, como é raro podermos presenciar na cena do teatro nacional. A não perder, num teatro perto de si.
Sunday, August 14, 2011
Antígona em Mérida: um deleite para os sentidos

Como em Agosto os espetáculos de teatro escasseiam no Algarve, os amantes desta arte, que até estão mais disponíveis para refletir sobre textos mais complexos, porque estão de férias, têm de se meter ao caminho e procurar fora da região aquilo que por cá não existe. E o destino, de há uns anos a esta parte, tem sido a cidade espanhola de Merida. A 400 quilómetros de Faro, sem portagens, Merida é, nos meses de Julho e Agosto a capital do teatro clássico. Este ano, a consagrada atriz espanhola Blanca Portillo foi nomeada diretora do Festival. Pela primeira vez em 57 anos este Festival Internacional de Tema Clássico foi dirigido por uma mulher, e como mulher, Blanca Portillo acredita profundamente nos valores do feminino. Daí este ano o festival girar em torno da figura feminina, possibilitando assim uma homenagem a esse universo feminino onde, nas palavras de Blanca Portillo, prima o sangue, a força das emoções, a luta pela paz, a energia da terra perante a ordem, a luta pelo poder e a racionalidade do mundo masculino”. Este ano foram apresentadas em Merida três versões da Antígona. A primeira, Antígona de Merida, de Miguel Murillo, recorda Mérida no ano de 1936, quando as tropas nacionais entram em Mérida. Uma jovem atriz quer recuperar o cadáver do seu irmão morto em combate. A segunda, a Antígona do séc. XXI, mostra os desafios da mulher atual procurando interpretar os mitos clássicos.
Antígona de Sófocles foi revisitada por Mauricio García Lozano. O encenador assumiu o texto integral de Sófocles, evidenciando os conflitos patentes nas várias dicotomias clássicas – homens contra mulheres, jovens contra velhos, indivíduos contra a sociedade - convidando o espetador a fazer uma nova leitura dramatúrgica através das coreografias de Ronald Savkovic.
O espectáculo começa com Antígona desocultando um pequeno piano de criança. Toca umas notas dispersas e é interpelada pela irmã. Discutem sobre a lei de Creonte e Antígona decide resolutamente enterrar o irmão. Saem de cena e entram de rompante dezenas de jovens raparigas correndo pela cena, felizes e envergando uns vestidos diáfanos. Depois entra o coro, protagonizado por homens brutos, guerreiros acabados de chegar de uma guerra, que com a sua força bruta destroem a fragilidade e a beleza das raparigas, assassinando-as. Depois dos ritos fúnebres devolvem-nas ao mundo subterrâneo, o mundo dos mortos, onde permanecem quietas, quais espíritos das águas profundas. O conflito entre a lei dos homens, simbolizada por Creonte e a lei da tradição e do respeito à família, simbolizada por Antígona faz-se sentir ao longo de todo o espetáculo, tendo o seu ponto alto no confronto direto entre as duas personagens e na discussão entre Hémon e seu pai, Creonte. Antígona decide morrer e fica sozinha, fechada na sua solidão. Nesse momento o anfiteatro romano é envolvido por uma cobertura prateada, que exalta a figura de Antígona, mostrando que não quer o mal de ninguém não quer desrespeitar a lei, mas há obrigações que os vivos têm para com os seus mortos. Quando vai para a tumba enverga um magnífico figurino, misto de vestido e jaula, caminhando resolutamente para a morte. Quando chega à beira da entrada para a morte, na boca de cena, deixa-se cair para os braços das deusas subterrâneas que a esperam na orquestra, transformada num tanque com água. Nessa dimensão do Hades Antígona é libertada de todas as cadeias, despindo o vestido prisão. Torna-se numa divindade dos rios subterrâneos envergando uma veste diáfana e contribuindo para o bem-estar daquele mundo. No mundo real Creonte acaba sozinho, fechado no seu palácio, ajustando contas com os mortos que foram proliferando à sua volta e Antígona menina volta à cena inicial, tocando no piano as notas que recordava da infância, dos tempos de cumplicidade com o irmão. A este texto maior da história do teatro juntaram-se as coreografias contemporâneas de Ronald Savkovic. Fortes e cruéis, quando mostrava o universo masculino e etéreas e ofuscantes quando desocultava o universo feminino. Foi sobretudo através da gestão dos corpos que o espetáculo mostrava as dicotomias primordiais. Um dos momentos altos do espetáculo foi a entrada de Tirésias, interpretado por Blanca Portillo, que de forma notável deu ao adivinho a dimensão ambígua quanto à sexualidade, anunciando friamente a Creonte que “não demorará muito tempo que surjam no teu palácio gemidos de homens e de mulheres”. O mensageiro da desgraça não demora a ver cumpridas os seus augúrios e, numa cidade cheia de mortos, o espírito do amor eleva-se e vence sobre o ódio. Portentoso, tanto na interpretação, sobretudo de Blanca Portillo e de Antonio Gil, como na encenação e na música original. Foi pena as ninfas não terem assumido a nudez de forma integral quando descem ao mundo subterrâneo, assim como a figura de Antígona perdeu muito quando ao ser-lhe retirado o vestido não expôs a sua nudez de forma liberta e adulta. Na estreia houve alguns problemas técnicos que não imperiram, todavia, que as cerca de 3000 pessoas que quase lotavam o anfiteatro aplaudissem entusiasticamente de pé esta produção que, certamente ficará na memória. Mesmo com uma noite cuja temperatura não baixou dos 30 graus, o público seguiu atentamente o espetáculo, rendendo homenagem no final a toda a equipa que o protagonizou e produziu.
Monday, August 8, 2011
Aventureiros já sem aventura

Uma procissão, uma mulher que remenda as redes de pesca. Um sentir trágico e carregado, homens vestidos de negro vigiando todos os movimentos. Este é o início de 1974, o espectáculo do teatro Meridional, encenado por Miguel Seabra sobre o ano da revolução do 25 de Abril. Um espectáculo onde o espaço cénico e os figurinos de Marta Carreiras, aliados ao desenho de luz de Miguel Seabra e à música de José Mário Branco assumem uma assinatura distintiva da qualidade. As crianças brincam despreocupadas enquanto são vigiadas por agentes da repressão. Deixam de poder brincar e têm de aprender a marchar, mesmo que as forças lhes fujam. A escola não é um sítio de aprendizagem mas de correcção e castigos. A vida dos adultos tem de se defrontar com uma vigilância mais apertada e a candura dos primeiros namoros contrasta com as detenções e com as partidas para a guerra. Comovente a cena em que os soldados se despedem das mulheres e partem para um destino incerto de onde podem não voltar. Os casamentos, as relações que têm por base um certo tipo de violência muito lusa surgem como um retrato social simbolizado pela música e pelos corpos que se tornam felizes ou amargurados. O edifício social está suspenso numas caixas que descem do tecto, como se fosse um armazém onde todas as emoções estivessem bem arrumadas. Há um momento em que todo esse edifício desaba e as caixas caem, provocando o caos com a sua libertação. O povo entra em euforia num momento de suspensão. Como se aquele momento de felicidade pudesse durar a vida inteira. Mas no momento seguinte, quando se pretende arrumar a casa começam os desentendimentos e as discussões. E assim se vai construindo um pais, aos solavancos e desordenadamente. Até que chega a hora dos políticos. A azáfama dos assessores a cuidar do espaço, os cidadãos ávidos a aplaudir e os discursos vazios e desprovidos de sentido. Brilhante essa caricatura de um país onde “houve aqui alguém que se enganou”. Depois dos primeiros tempos de alguma confusão após a mudança de regime deparamo-nos com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia e com o esvaziamento de sentido que os gestos assumem de uma forma cada vez mais alarmante. O consumismo, a indiferença perante alguém que sucumbe ao seu lado, as conversas vazias de sentido e as palavras vazias de conteúdo. Nas festas as pessoas mostram-se como figurinhas que valem pelo invólucro, assumindo uma pose dos tempos hipermodernos. O homem dos novos tempos assume-se de acordo com o mercado, o indivíduo e os avanços científico-tecnológicos. O símbolo da revolução de Abril, exposto num museu, é esvaziado do seu sentido primordial e confundido com uma obra de um artista contemporâneo. O cidadão conseguiu o seu direito ao voto mas é tratado de uma forma descartável. E num mercado comum, onde sempre quisemos pertencer, damo-nos ao luxo de negligenciar as opiniões de outros cidadãos que, como nós, foram à procura de “outras paragens, entre outros povos, onde o suor, se faz em pão”. Mas o apelo da mestiçagem é mais forte e a força da música consegue unir o que a política não permite. Aos som de vários batuques as pessoas de diferentes nacionalidade e diferentes credos dançam juntas até que restam os injustiçados, os perfilados no medo, os filhos bastardos da vida que continuam à espera, olhando o futuro, ansiando por dias melhores.
Toda esta história foi narrada com o corpo, com canções, com a luz e com a plasticidade da cenografia. As palavras foram parcas mas as estritamente necessárias para o desenrolar da acção. Miguel Seabra soube proporcionar um deleite para os olhos, um verdadeiro bálsamo para os sentidos, numa época em que sobram as palavras e o discurso de torna desprovido de sentido.
No final Miguel Seabra leu um poema de Alexandre O’Neill, que foi musicado por José Mário Branco, como uma mensagem a ter em conta nestes tempos difíceis: “Perfilados de medo / agradecemos o medo que nos salva da loucura. / Decisão e coragem valem menos / E a vida sem viver é mais segura. // Aventureiros já sem aventura, / perfilados de medo combatemos /
irónicos fantasmas à procura /do que não fomos, do que não seremos. /Perfilados de medo,/ sem mais voz, / o coração nos dentes oprimido, /os loucos, os fantasmas somos nós. /Rebanho pelo medo perseguido, / já vivemos tão juntos e tão sós / que da vida perdemos o sentido... Foi um momento intenso, cantado a capela, recordando a todos que o teatro ainda pode ser uma arma.
Casamento em jogo

Casamento em Jogo, de Edward Albee, foi a proposta do Teatro da Trindade para o início da época estival. Encenado por Graça P. Corrêa conta com a participação de Rogério Samora e Cucha Carvalheiro. O texto, na boa tradição de Edward Albee tem um vetor satírico, abordando a realidade crua de um casamento de 30 anos, desgastado pela rotina e pela falta de aventura. Edward Albee, um dos dramaturgos que a ACTA trabalhou em 2000, com o texto Zoo Story, mostra a realidade de uma forma amarga, pincelando-a de uma ironia quase macabra. Se na sua primeira e brilhante peça de teatro, Zoo Story, a ação era protagonizada por dois homens desconhecidos, sendo um deles um sem abrigo, no texto Casamento Em Jogo o enredo submete um casal da classe média alta a um jogo de avanços e recuos verdadeiramente notável. A cenografia deslumbrante de Ana Vaz ajuda o espetador a entrar na intimidade requintada daquele casal. Um enorme estante de livros, jornais no chão, um belíssimo candeeiro de tecto, e espaço, muito espaço a mediar os sofás, protegidos por um majestoso cortinado vermelho que se impõe na cena. O espetáculo começa com a mulher deitada no sofá, lendo qualquer coisa que a faz soltar algumas gargalhadas. Momento depois chega o homem, pousa as chaves na mesa, a pasta na cadeira e diz: “Vou deixar-te”. Aquela frase, lapidar para a maior parte das relações, não parece surtir efeito na mulher que desdramatiza, perguntando-lhe se teve um dia mau. O homem insiste naquilo que diz ser a sua pretensão e, para ser levado a sério decide repetir a entrada. A mulher, uma vez mais, ironiza, encolerizando-o. O homem, desesperado por ser levado a sério, repete a entrada quatro vezes, levando a que a mulher proponha a instalação de uma porta giratória, mas que funcione a moedas, para poderem ganhar alguns trocos enquanto as entradas não se tornam perfeitas e triunfais. Na última entrada a mulher revela ao homem que estava a ler um livro escrito por si e que ainda não tinha sido editado, o que causou um enorme espanto no seu companheiro de 30 anos. Então depois de uma vida em comum ele descobre que afinal a sua mulher também escreve? Refeito do choque inicial, outro choque o espera: a sua mulher não só escreve, como escreveu um livro (O Livro dos Dias) sobre todos os seus momentos sexuais ao longo de 30 anos. Cerca de 3000. Estupefacto, o homem quer saber o conteúdo acerca do seu desempenho sexual. Ela lê-lhe algumas descrições. Umas são secas, com três ou quatro palavras. Outras mais profundas e poéticas, que ele ironiza, comparando a escritores norte americanos de relevo, como Henry James ou Hemingway. O jogo entre as personagens, interpretado de forma magnífica pelos atores, adensa-se e entre ofensas, contas com o passado, pedidos de desculpa e agressões físicas, o casal mostra o que tem sido a sua vida durante 30 anos. E, tal como na obra A Guerra dos Rosas, assistimos pelas descrições no Livro dos Dias, a um envolvimento terno e apaixonado, arrebatador que embevecia as pessoas que os olhavam. Ainda passeavam de mãos dadas aproveitando todas as oportunidades para descobrirem o corpo um do outro. Entretanto passaram 30 anos, criaram dois filhos e cometeram-se traições. Traições perdoadas tacitamente mas nunca esquecidas. Nunca apaziguadas pelo tempo, prontas a servirem de cavalo de batalha na primeira ocasião. O jogo oscila entre o “Vou deixar-te” e o “amo-te, sempre te amei e tu sabes disso”. Entre essas duas reflexões Rogério Samora e Cucha Carvalheiro oscilam entre uma ternura envolvente e uma violência levada quase ao limite. A noite acompanha as intensas e múltiplas variações do casal até que surge a manhã com a sua luz que rompe e invade os pensamentos mais sombrios. O homem afasta a cortina, vislumbra o jardim, e percebe que o seu lugar no mundo não é mudar de vida naquele momento. A sua missão é cuidar do jardim, uma vez mais. É cuidar de si e da sua relação, e daquela mulher que ao longo de 30 anos o amparou, resistindo a tudo por respeito e companheirismo. Aliás, é ela sempre quem conduz o homem ao longo da discussão. É ela quem coloca as cartas na mesa, quem dá o jogo e quem vence todas as partidas. O homem tenta dizer um discurso que elaborou muito bem no seu espírito, mas que resvala na dimensão daquela relação. Casamento em Jogo assume-se como um retrato das relações contemporâneas, vividas por homens e mulheres insatisfeitos e inseguros mas que se vão ajeitando um ao outro, como dois sapatos velhos se ajeitam à forma de andar dos pés que os calçam. Um momento de teatro notável protagonizado por dois atores de referência da nossa cena. Vale a pena dar um saltinho a Lisboa de quinta-feira a sábado e passar pelo Teatro da Trindade até dia 31 de Julho para apreciar este magnífico espetáculo.
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