Tuesday, December 5, 2017

Joana Craveiro guia-nos numa visita aos labirintos da memória

Dia 27 de outubro o cineteatro de Loulé recebeu a companhia Teatro do Vestido com o projeto Um mini Museu Vivo de Memórias do Portugal Recente, com encenação e interpretação de Joana Craveiro. Confesso que, não fora a memória do trabalho de excelência de Joana Craveiro, a que tenho assistido desde o projeto Lugar Nenhum, não teria considerado deslocar-me a Loulé para assistir, uma vez mais, a um espectáculo sobre o 25 de Abril, com todos os condimentos utilizados na perspetiva de teatro “escolar”. Aceitei o convite e em boa hora fui, pois o que me foi dado ver, foi um dos mais conseguidos projetos de teatro a que eu assisti sobre a revolução de 74. Joana Craveiro inicia o seu espectáculo no átrio do teatro, assumindo o paralelo da história da nossa revolução com a sua própria história, partilhando memórias e objetos pessoais. A história da gente comum para a qual, os capitães arriscaram a vida. Começamos por perceber a história de uma fotografia de Joana Craveiro em criança, tirada no fotógrafo, com os montes suíços por detrás, compondo uma cenografia muito ao gosto da época. Era o contraste de um país a preto e branco que manifestava a sua utopia sonhando com as cores de uma sociedade, que se acreditava, civilizada. Nesse momento Joana reproduz a pergunta feita ao seu pai, e que se irá tornar o mote do espectáculo: Quanto tempo é preciso passar para que se consiga falar, de uma forma objetiva, sobre uma revolução de mudou radicalmente a vida de um país? Joana partilha a gravação com o registo da voz do seu pai e o público pôde ouvir: um certo tempo. O público é convidado a entrar integrado no espectáculo, como visitante privilegiado do percurso de vida e das memórias afetivas de Joana Craveiro. Somos, enquanto público participativo, conduzidos a lugares nos quais estão disponíveis pequenos blocos de apontamentos e lápis. Porque neste museu todas as palavras e todas as memórias contam. Como tal, deverão permanecer e contribuir para a história afetiva de um processo histórico que se mobilizou para a libertação de um povo. No palco estão expostos, numa aparente confusão, diversos objetos, desde cartazes a fardas da mocidade portuguesa, aparelhos de rádio, giradiscos, livros, muitos livros, reproduções de paredes com inscrições de palavras de ordem que se ouviam na primeira metade da década de 70, bustos, fotografias... Um verdadeiro caleidoscópio de fragmentos que compõem as memórias da época que antecedeu a revolução e do seu período imediatamente posterior, conhecido por PREC (processo revolucionário em curso). O meu olhar subjetivo de espectadora que viveu o 25 de Abril com 10 anos focou-se nos cartazes que reconheci, nos aparelhos que também faziam parte do meu quotidiano, e na história, aparentemente banal, das crianças que naquele dia tinham ficado em casa observando os pais de ouvido colado à telefonia. Foi a partir deste momento que o génio da actriz/encenadora Joana Craveiro se revelou, pois saltando o esperado percurso escolar, sem prejuízo do rigor histórico, Joana conduziu-nos num vórtice de emoções vividas em duas horas que, como espectadora, transformei em dois minutos. E estava lá tudo. Lá, no palco, na voz e no corpo de Joana Craveiro, nos objetos, na memória coletiva. Lá estava o país a preto e branco, o medo de ser mobilizado para uma guerra do outro lado do nosso mundo, o medo da prisão, o medo da tortura, o medo do exílio, o medo de viver. Lá também estava a emoção dos dias levantados, o poema de Sophia, a euforia dos tempos vividos após a revolução, a “Gaivota” cantada em coro pelo público, as reuniões plenárias onde, de repente, todos se juntavam na urgência de dizer e de fazer. E de contribuir para qualquer coisa que tinha de acontecer, mas que tinha se ser diferente. Apesar do aparente caos apresentado no palco, Joana Craveiro seguiu uma linha coerente, servido-se de vários suportes (projeções de álbuns de fotografias, documentos, registos magnéticos) dando sentido ao produto final. E no final, munidos de cravos vermelhos, entretanto distribuídos, de panfletos lançados desejando “longa vida ao nosso líder Mao Tsé Tung”, o público, emocionado, aplaudiu efusivamente esta dádiva de recuperação da sua memória. Joana Craveiro, sozinha em palco, mas acompanhada pelas memórias de um povo, levantou uma vez mais a questão inicial: quanto tempo é preciso deixar passar para se começar a falar objetivamente da revolução de Abril? No debate final houve algumas achegas de espectadores, como a de um ex-combatente na guerra de África e que, recordando-se dos discos em vinil que enviavam para os soldados, com uma canção interpretada pela Hermínia Silva, desvendou o real uso de tão inusitada oferta: os soldados utilizavam os discos para jogarem, lançando-os entre eles. Dentro de algumas partilhas, umas convenientes, outras nem tanto, o museu continuou a abrir-se aos seus visitantes, incorporando as suas memórias e validando os seus testemunhos. Em suma: Uma noite memorável. Obrigada, Joana Craveiro.

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