Sunday, March 15, 2009

Os Maias de António Torrado


António Torrado reescreveu a obra-prima da literatura portuguesa do séc. XIX, Os Maias, adaptando-a ao palco. Depois das opções tomadas assistiu-se a uma morna passagem pela crítica de costumes suportada por um elenco desadequado. Em cena no Teatro da Trindade até dia 26 de Abril.
O Teatro da Trindade, no âmbito das comemorações dos seus 146 anos de existência, propôs-se apresentar uma adaptação do histórico romance de Eça de Queiroz, Os Maias. Com reescrita de António Torrado e encenação de Rui Mendes, o foco da obra foi apontado para a crítica social e de costumes de que Eça de Queiroz era um arguto combatente.
O espectáculo começa com a projecção em filmagem de uma reconstituição histórica. Os espectadores vêem Carlos da Maia e João da Ega a chegarem de tipóia ao Teatro da Trindade para assistirem ao famoso sarau de beneficência, no qual Eça de Queiroz pôs a discursar a nata do ridículo da sociedade intelectual portuguesa. Com a recriação de dois camarotes do Teatro da Trindade em palco, dá-se início a uma série de analepses que ajudam a contar a história a partir de um tempo no qual a tragédia já se tinha instalado. Desse sarau do Trindade abre-se uma janela para o passado onde se vê a aparição da “negreira” Maria Monforte, cobiçada por todos os homens da sociedade lisboeta e a viagem vertiginosa desenvolvida por Pedro da Maia até ao seu suicídio. Os anos de “educação à inglesa” do jovem Carlos Eduardo foram omitidos, aparecendo já homem feito, disposto a cursar medicina. O sub-título da obra “Episódios da Vida Romântica” foi esquecido em detrimento do apontar da galeria de caricaturas dos intelectuais que dominavam a cena intelectual de Lisboa nos finais do séc. XIX. As personagens femininas, qual golpe shakespeareano, foram reduzidas a duas, interpretadas pela mesma actriz, à qual o dramaturgo não teve o cuidado de desenvolver na sua estrutura interessante. As falas que denotam uma maturidade de espírito, a argúcia e a discussão intelectual de igual para igual de Maria Eduarda quando ilustra as pesquisas de Carlos Eduardo são omitidas, remetendo Maria Eduarda a uma posição subalterna de dona de casa bonita. Apenas a registar um rasgo de inteligência quando se defende da acusação maldosa do brasileiro e do próprio Carlos Eduardo. Todas as outras mulheres desaparecem da história, sendo apenas nomeadas de passagem, como seres desinteressantes e fúteis.
A versão de António Torrado condensa-se num grande flasback que se concentra na vida política de Lisboa. É interessante verificar que as mentes decrépitas e medíocres da política continuam em força nos mesmos lugares, dirigindo os destinos do país. No entanto as sucessivas mudanças de tempo, usuais no cinema, não contribuem para a compreensão da leitura de uma obra tão complexa, como Os Maias. Quando um dramaturgo põe em cena uma versão de um clássico não deve partir do pressuposto de que toda a gente já o estudou. Houve muita gente, dentre jovens, cidadãos brasileiros, que saíram do teatro sem terem percebido nada da história. Quando sucedeu a revelação trágica do incesto houve vozes que se perguntavam: “mas como é que eles souberam, quem é que lhes disse?”. A ideia pré-concebida de que o público já é conhecedor de todos os meandros da obra pode ser prejudicial para a compreensão da mensagem principal e não presta serviço nem ao teatro nem ao autor. O percurso queiroseano de Sintra foi omitido, deixando de lado um dos mais belos quadros pintados pelas metáforas do autor sobre a vila das “nascentes de águas vivas”. Esse percurso é um dos motivos de regressos recorrentes a Sintra de centenas de leitores d’Os Maias e, nesse sentido, uma traição ao espírito da obra.
Relativamente ao elenco houve opções incompreensíveis. Por um lado, António Torrado, numa entrevista dada à SIC, defende que apesar de Eça de Queiroz descrever detalhadamente todos os pormenores físicos das personagens, a encenação se preocupou mais em “pôr em cena o espírito das personagens e dos enredos que as envolvem do que propriamente as características físicas de cada uma delas.” Não se compreende então a razão da escolha de um actor como José Fidalgo que apenas cumpre a imagem de Carlos da Maia, quando lhe falta a voz, a presença em palco, a força de interpretação que sustentaria a personagem principal d’Os Maias. É chocante ver Pedro Górgia interpretar o Dâmaso Salcede, pois nem a postura física nem o espírito fazem jus à personagem “chic a valer” criada por Eça de Queiroz.
A questão coimbrã, elemento chave da discussão entre Ega e Alencar, aquando do jantar no Hotel Central passa despercebida no meio de tanta marcação concebida para provocar o riso. Em relação às interpretações, José Airosa está convincente quando brinca com a personagem de João da Ega. No entanto, quando assume o alter-ego do autor, deverá preocupar-se mais com a gestualidade própria do século XIX, pois não é credível colocar o monóculo típico do Eça no olho direito e retirá-lo com a mão esquerda. José Fidalgo não está à altura de um Carlos Eduardo e Sofia Duarte Silva mostrou, tanto quanto lhe foi permitido, a portentosa Maria Eduarda. João Didelet esteve excelente no ridículo discurso que proferiu no teatro da Trindade sobre o Anjo da Caridade. As outras personagens mantiveram-se num registo morno, sem fazerem muita honra à fina sátira social de Eça de Queiroz. Quanto mais não fosse, para dar o toque de comédia apontado pela encenação, faltaram as duas espanholas enroladas com o Eusebiozinho, contraponto a toda a educação de Carlos Eduardo e a cena fulcral, utilizada como exemplo em todos os cursos de escrita para teatro da revelação do incesto. A entrada repetida do criado, impedindo que a revelação brutal se faça dentro do tom pesaroso da tragédia é uma das cenas fulcrais da literatura portuguesa. Foi uma pena não ter sido explorada nesta versão.
Um ponto positivo nesta encenação teve a ver com o suporte musical da responsabilidade de Afonso Malão. O diálogo entre Carlos e o músico, que fala com ele através do piano funciona na justa medida. Os apontamentos musicais estão muito bem justificados e o tom que o músico utiliza ao longo de todo o espectáculo é o ideal para funcionar como complemento às vozes dos actores.
O desenho de luz é adequado, com momentos bonitos, como o do jantar no hotel central, mas faltou a luz que pintasse o idílio de Carlos e Maria Eduarda. O guarda-roupa de época, concebido por Ana Paula Rocha estava adequado podendo, no entanto ter piscado o olho à contemporaneidade quando se faz a comparação dos discursos dos políticos da época com os actuais parlamentares.
Um espectáculo em que os professores devem ter trabalhos redobrados a preparar os seus alunos para aquilo que irão ver. No final o público fica à espera de que os dois amigos irrompam do palco para apanhar “o americano”. No entanto, João da Ega e Carlos Eduardo ficam estáticos, a ver a vida passar por eles, quais meninos mimados de uma existência ociosa. Talvez o final mais bem conseguido para o olhar fino e satírico de Eça de Queiroz sobre os vícios da sociedade portuguesa.

1 comment:

Gostosos said...

Gostei muito do comentário apesar de não ter visto a peça no Algarve. No entanto, vi-a em V.N. Gaia e posso afirmar que, segundo o que descreveu, foi bastante melhor em certos pontos. Como por exemplo no final. Na versão que vi os actores não eram famosos mas na generalidade fizeram um bom trabalho e na parte final eles saltam do palco e pelo corredor do meio do público, correram para apanhar o eléctrico. Penso que foi uma boa solução, ao contrário do guarda-roupa que, em certos casos, era horrível.
É certo que são diferentes encenações e com certeza mais virão, espero que alguma consiga atingir o nível de qualidade que esta obra prima merece.