No dia 24 de Janeiro o teatro das Figuras trouxe a Faro o último trabalho de Beatriz Batarda. De Homem para Homem é o título de um espectáculo encenado por Carlos Aladro, baseado no texto Jacke wie Hose, do dramaturgo alemão Manfred Karge, que por sua vez se inspirou numa história real. É a história de uma sobrevivente. Numa época em que o trabalho escasseava, Ella Gericke, uma jovem mulher, depois de se ver viúva, tenta vencer a penúria através de sucessivos enganos. Assume a identidade do marido morto, trabalhando na condução de uma grua. Põe uma braçadeira nazi para não lhe fazerem perguntas indiscretas, adopta a postura de um guarda num campo de concentração para fugir à inspecção militar, volta à identidade de mulher para não ser acusada de desertora, prostitui-se por um prato de grão, chora copiosamente a morte de um coelho e obriga os prisioneiros a caminharem sem descanso ao longo da sua cela. No final da sua vida descansa em paz, na pele de uma personagem dos seus contos infantis.
A cenografia de Manuel Aires Mateus, arquitecto que também assinou o cenário do espectáculo Turismo Infinito, é imponente, exibindo uma mão gigante, que ocupa grande parte do palco, cujos dedos caem da boca de cena para a plateia, e ao longo da qual a actriz vai evoluindo, no seu ser frágil, perante o poder simbolizado. Ella Gericke apenas um joguete, um ponto minúsculo no meio de uma engrenagem dominante. Os dedos da mão escondem os diversos adereços que a actriz utiliza ao longo do seu desempenho.
O desenho de luz de Nuno Meira desoculta os vários matizes com que a actriz pinta o seu desempenho. São 26 quadros. 26 retratos de uma mulher que usou de tudo para sobreviver.
A música de Manuel Aires Mateus consegue evocar as sensações adequadas ao momento que o público está a viver.
Beatriz Batarda tem o desempenho esperado de uma actriz com a sua experiência. Uma noção de ritmo adequada, uma presença que se impõe pelas sucessivas metamorfoses do corpo. As transmutações da voz, porém, não fazem justiça ao papel que lhe é exigido. Beatriz Batarda prendeu o público num monólogo de 90 minutos. Mas faltou-lhe o génio de Maria João Luis no espectáculo Stabat Mater. Faltou-lhe a força de Ana Leitão no espectáculo Stabat Mater Furiosa. Faltou-lhe a versatilidade de Telma Saião no espectáculo Valsa nº6. Faltou-lhe a poesia de Cláudia Nóvoa no espectáculo Ela uma vez. Monólogos com textos fortes sobre a coragem de mulheres que não aceitaram ser mais um dedo na grande mão que domina. Textos que apontaram mulheres que, a seu modo, foram mais um grão de areia na engrenagem. Mulheres vulgares que se tornaram heroínas. Tal com dizia Fernado Mora Ramos, “Manfred Karge, que trabalhou no Berliner Ensemble, conhece bem a lição brechtiana, a lição contida na famosa A Boa Alma de Setsuan, que demonstra como os bons neste mundo são considerados tolos. E esta peça é isso, uma manobra global de estranhamento no sentido brechtiano. (…) Ella foi uma criatura que amou, foi desejada, foi solidária, que não optou, mas não quis a guerra, que teve de matar, que foi perseguida, que vendeu o corpo, que se meteu debaixo das mantas com um empresário, que traficou… É a história de uma sobrevivente num mundo que impede a vida, a história de uma vida solitária e clandestina que se multiplicou em identidades forjadas ao sabor dos condicionamentos.” Mas se esta é uma encenação sobre a dignidade humana, faz parte de um estranhamento não só brechtiano interrogarmo-nos como o próprio encenador o fez quando coloca em questão o seguinte dilema: “Às vezes pergunto- me se o autor entende que é melhor morrer dignamente do que viver indignamente”. Esta é a história de uma mulher que não tem a mínima piedade pela pessoa humana. Mantém os seres humanos sob um penoso cárcere e tortura e liberta coelhos da sua prisão. É a história dos que não merecem ficar na história. Para quê então elevá-la à condição de grande dilema universal?
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