Sunday, March 15, 2009

O bobo, o ministro e o Rei


Foi no dia 30 de Janeiro que a companhia de teatro Te-Atrito estreou a sua última produção. Tratou-se de um espectáculo baseado no texto de Raul Malaquias Marques Um bobo para o Reino e encenado pelo director artístico do Chapitô, José Carlos Garcia.
O texto é uma fábula irónica que discute a legitimidade do poder por governantes que perderam as competências essenciais para o exercer. A perda da voz é a alegoria das sucessivas perdas de capacidades fundamentais para o exercício de uma boa governação. O rei perdeu a voz e entregou o governo do seu país ao bobo. Este aceitou o pesado fardo da governação a contra gosto mantendo, contudo, uma relação de lealdade para com o seu soberano. O Rei tem a clareza de espírito para perceber que a sua incapacidade o impede de governar e foge do seu país, juntando-se a uma trupe de saltimbancos onde imita vozes de animais. O bobo continua a manter o espírito crítico ao serviço da governação e o seu ministro é elevado à categoria de bobo, porém, sem conseguir exercer a sua função de forma correcta. É um bobo sem piada. Teve de ser despromovido e continuar a ser ministro.
Esta história é transmitida através de uma economia de meios que contribui para o ritmo do espectáculo. Os actores Pedro Monteiro, Rita Neves e Igor Martins desdobram-se em várias personagens que a encenação simbólica de José Carlos Garcia redescobre através do adereço, do pormenor no figurino, do suporte musical. Assim, os três actores são indiferenciadamente as empregadas de limpeza, o ministro, o bobo, o rei, o médico. A música assume-se como uma personagem. O babete é o símbolo do poder e passa do pescoço do rei para o do bobo, quando este assume o poder. Mas o babete é também o toucado de uma das empregadas da limpeza. Um carrinho de transporte de bagagem é palanque, veículo de transporte do soberano, mesa de operações, trono real. A operação em que o médico verifica as cordas vocais do rei é hilariante, pois retira da garganta do soberano um molho de cordas embaraçadas ao mesmo tempo que se ouvem uns ruídos distorcidos de guitarra eléctrica. Veredicto: as cordas vocais do soberano estão desafinadas.
Os sons que preenchem o espectáculo, concebidos e transmitidos pelo actor Igor Martins são também elementos que contribuem para penetrar no imaginário do espectador. As vozes do povo chamando pelo Rei, as diferentes sonoridades da guitarra eléctrica, os guizos do bobo são pormenores relevantes para a assunção das várias mensagens que o texto quer transmitir. A consciência do Rei quando percebe que chegou a sua altura de abdicar do trono, entregando-o à pessoa mais arguta do reino: o bobo, que através da observação atenta da realidade aponta os pormenores a serem modificados. O Rei, personagem apolínea, porque racional, coloca sobre os ombros de Diónisos o pesado fardo da ordem. O bobo passa a Rei e o Rei segue, livremente, com a sua vida divertindo as pessoas através dos sons estranhos que solta da sua garganta. Depois dos sons de guitarra eléctrica passou a imitar animais. A contenção no gesto de Rita Neves quando imita o gato, o cão, o porco, é equilibrada, anunciando a parte que faz perceber o todo.
No final o ministro que é especialista no protocolo e dá sentenças com pronúncia francesa só consegue desempenhar o papel de ministro, pois não tem o espírito suficientemente arguto para ser engraçado. Só tem perfil para ministro.
O texto foi adaptado à realidade dos três actores, preservando-se contudo a sua mensagem original. É importante saber acabar e saber o tempo exacto para o fazer. Delegar o poder quando as competências se nos falham enquanto não lesamos a coisa pública com a nossa incapacidade de discernimento.
Este é um projecto de educação pela arte que convida a reflectir sobre valores como o respeito pelo serviço do poder, sobre a cidadania, sobre o exercício da governação. Um trabalho que convida os jovens a voltarem ao teatro e os mais velhos a descobrirem em si a capacidade de brincar. Um trabalho de puro prazer que obriga a pensar com seriedade nos valores ético-políticos a partir dos quais se constrói a sociedade. Este espectáculo resulta de uma parceria com a DEVIR / cAPA – Centro de Artes Performativas do Algarve, a DREALG, as Câmaras Municipais de Faro e Lagoa, a ARC Músicos de Faro e o Instituto Português da Juventude – Delegação de Faro.

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