Monday, February 25, 2008

Uma valsa para a morte


As companhias de teatro Al-Masrah e BAAL-17 já tinham dado a conhecer ao público algarvio o dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues através do espectáculo Beijo no Asfalto. Segundo o grupo, a descoberta deste autor “foi uma surpresa, primeiro pela riqueza da sua escrita, e segundo pelo nosso desconhecimento não só da obra mas também da sua importância no teatro brasileiro”. Este ano o grupo do Baixo Alentejo apostou noutro texto do autor, classificado pelo autor como “Peça Psicológica”. Valsa nº 6 é um texto onde o autor viaja até às amarguras da doença mental. O espectáculo consiste num monólogo interpretado por Telma Saião e dirigido por Nelson Rodrigues Filho. A ideia de monólogo surgiu a Nelson Rodrigues, segundo uma entrevista que concedeu em 1951 ao Diário Carioca, por considerar que um dos problemas do teatro era “o excesso de personagens”. “Entendo, no caso, por excesso, mais de uma. Pensei, por isso, há muito tempo, na possibilidade de tal simplificação e depojamento, que o espectáculo se concentrasse num único intérprete. Um intérprete múltiplo, síntese não só da parte humana como do próprio décor e do outros valores da encenação. Uma pessoa individuada – substancialmente ela própria – e ao mesmo tempo uma cidade inteira, nos seus ambientes, sua feição psicológica e humana.”
O espectáculo começa com uma visão onírica, quase gótica, de uma personagem branca sentada a um piano branco. O estado de decrepitude em que se encontram as paredes, assim como o chão áspero, de cimento, ajuda à construção de uma atmosfera teutónica e mórbida. O espectador tem a impressão de ter entrado num jazigo. Depois, a rapariga avança até ao centro e a luz começa a iluminar a sua face lívida. Sabemos então que se trata de Sônia. Uma adolescente de aspecto frágil, que sentimos perturbada com muitas dúvidas e muitas incertezas. Não se lembra do resto do seu nome e não se lembra do que lhe aconteceu. Lembra-se, isso sim, de uma música que costumava tocar ao piano: a valsa nº6 de Chopin, que passa a tocar nos momentos em que a memória é recuperada, como um longo tecido que precisa de ser cerzido. Os remendos vão trazendo aos poucos as lembranças de um passado traumático. Com a iluminação do rosto e do corpo surge uma enorme cortina vermelha na parede em frente aos espectadores. O vermelho de múltiplos sentidos que, aos poucos, os vai desocultando. O vermelho das regras que marcam a passagem de menina a mulher, o vermelho da paixão que marca a visão das adolescentes, o vermelho da tragédia anunciada pela obsessão da rapariga pela morte, o vermelho da sexualidade, ora contida, ora aceite, o vermelho do sofrimento e da aceitação de um destino sinistro. Esse longo delírio, simbolizado no panejamento vermelho anuncia-nos uma história que antecipa um desenrolar trágico. Telma Saião interpreta Sônia. Mas também interpreta o médico, a mãe da jovem, o pai, o coro da intriga, os homens alcoolizados que comentam a história. E interpreta a Sônia que não acredita na Sônia. Mais de 14 personagens! A jovem adolescente sofre de afectações da personalidade que têm a ver com o domínio do super ego sobre a sua assunção da sensualidade. Sônia procura a paixão numa fase em que se encontra no limite entre a menina e a mulher. Apaixona-se por um homem mais velho, casado, com quem assume uma relação. Porém, a moral vigente provoca-lhe um distúrbio na personalidade, fragmentando-a. A jovem quer lembrar-se da mulher que assumiu a relação com o homem casado mas tudo se torna indefinido, sem rosto, inclusive o seu nome. Aos poucos, a valsa nº 6 vai dando corpo e forma à memória da jovem. A trama adensa-se e o público vai percebendo que nesta história há uma entrega amorosa, ciúme, culpa, obsessão e morte. Estes ingredientes são estruturados numa dramaturgia que foge engenhosamente ao formato de folhetim. Nelson Rodrigues apresenta a trama fragmentada, como a memória da rapariga, trazendo à sua fala as peças desarticuladas de um puzzle. No final, a valsa nº 6 de Chopin encaminha-nos para a morte da rapariga, revelando-nos que todo aquele delírio de adolescente era uma reminiscência de uma personagem que já estava morta. A prestação de Telma Saião impressiona, não só pela fragmentação de personagens que é capaz de encarnar, mas também pela verdade que transmite em cada uma delas. A menina frágil, educada e pura que nos surge no início transforma-se numa criatura perturbada pela paixão, com traços de uma personalidade esquizofrénica que tem ciúmes da própria imagem quando a olha de revés no espelho. Telma Saião consegue conduzir o espectador a emoções fortes e opostas na mesma personagem, como a compaixão por uma menina que sofre, ou a repulsa por uma mulher ciumenta e cruel que pensa em matar o seu amante.
O texto tem aquela poesia que sobrevive no meio da tragédia cruel, a que Nelson Rodrigues nos habituou. No meio do desespero de uma falha a um domingo à missa, símbolo de mácula na pureza de um comportamento intocável, a jovem diz que “quando chove em cima das igrejas, os anjos escorrem pelas paredes”. A simbolização de uma dor causadora de lágrimas, que arrasta consigo uma ordem protectora. No final, o desfecho adivinhado do assassinato da jovem enquanto tocava o seu tema preferido ao piano, alivia a ansiedade e a tensão crescentes, provocadas pelo discurso alterado, ditado pela demência de Sônia. Uma demência provocada por uma adolescente que levou ao extremo as angústias da crise existencial da mudança de pele sofrida naquela fase de transição. Como texto psicológico, Nelson Rodrigues assume explicitamente certas fobias, como o medo da operação à garganta, símbolo do complexo de castração freudiano, ou a vergonha de olhar para os pés nus, como a imposição do sentido do dever sobre a sensualidade que se está a manifestar de uma forma intensa e ávida. A própria necessidade de ver os móveis com panos por cima tem a ver com a procura de cobrir em si a evidência do desejo latente, que teima em tornar-se manifesto.
Com desenho de luz de Marco Ferreira, direcção musical de João Schmid, figurino de Regina Schimtt, o espectáculo Valsa nº6, produzido pela BAAL-17 em parceria com as instituições brasileiras Vulpeculae produções Artísticas do Rio de Janeiro e pela Pedra que Brilha de Minas Gerais, é um objecto artístico que impressiona e provoca um calafrio de uma estranha beleza no espectador.
Este espectáculo teve a sua ante-estreia dia 1 de Outubro na Escola Estadual de Teatro Martins Pena, Rio de Janeiro e seguiu dias 6 e 7 de Outubro para a estreia oficial em S. João D´El Rei (Capital Brasileira da Cultura), seguindo depois em digressão pelo Estado de Minas Gerais. Quando o Algarve quiser dar a conhecer este espectáculo também aos seus habitantes, poderemos vê-lo, ou revê-lo quando for programado numa autarquia perto de nós.

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