O Teatro Lethes foi palco de um espectáculo que tocou o sublime. Cláudia Andrade soube transformar a poesia de várias mulheres num espectáculo cujo sentimento poético invadiu de mansinho a emoção do público.
Falar de poesia é falar do indizível que se torna verbo. Falar de um espectáculo de poesia é verbalizar a emoção que deixou de estar contida e extravasou para o corpo, para a pele, até explodir no aplauso final. Falar do espectáculo Ela Uma Vez, de Cláudia Andrade, é tentar dizer o que se sente quando o espectáculo nos faz atingir o êxtase perante uma emoção estética.
Ela uma vez é um espectáculo concebido por cinco criadoras, inspirado na obra de sete poetisas, que dá voz ao universo feminino. Para além de divulgar escritoras pouco conhecidas pelo grande público, o espectáculo reflecte sobre a condição da mulher: os seus medos, os seus anseios, as suas fragilidades, o seu poder.
O espectáculo de Cláudia Andrade, produzido pela associação Próxima Estação, começa com uma pequena animação, de Ana Pesquita, que nos confronta com a imagem de um álbum de emoções que se foram guardando de uma forma cuidada e delicada. Mostra os sonhos de uma menina a elevarem-se, levando-a a voar com as borboletas, com os pássaros, e a voltar, brincando com os seus brinquedos.
No biombo onde foi projectado o pequeno filme de animação surge um vulto. A sombra de uma mulher, que se vai tornando cada vez mais nítida. A sombra torna-se voz e o corpo vai-se desocultando por detrás do biombo. Primeiro uma mão, depois uma cabeça que espreita, como se fosse um nascer para a vida. Por fim assume-se um corpo inteiro cujo rosto ainda está protegido, escondido por uma máscara. A actriz, menina, vai falando de sabores, de arroz doce, e vai ganhando a confiança necessária para substituir a máscara pelo seu rosto. A mulher, finalmente, nasceu e vai fazer com o público um percurso desde a infância até à velhice, passando pelas várias idades da mulher. Do vestido de bibe a mulher ganha novas formas e mostra-as num vestido vermelho e sensual. Calça os seus primeiros sapatos de salto alto e lança-se por inteiro na mágica aventura de ser mulher. Recorta os contornos do seu príncipe encantado e dança com ele, sentindo-se feliz. Essa imagem, em que Cláudia Andrade rasga a x-acto a silhueta de um homem, esculpindo o exterior à sua maneira, dançando de seguida um tango, dá-nos a percepção clara dos sonhos das jovens adolescentes que, na sua maior parte, se deixam deslumbrar pelo lado estético das relações. A rapariga dança e transmite-nos a leveza de uma existência feliz. O peso dessa felicidade entranha-se na pele e concebe uma criança, passando da juventude e da sensualidade pura para a idade madura. Nessa fase a mulher dá-se conta das suas prisões, das suas limitações, e a cenografia, inicialmente um biombo, transforma-se numa casa onde se adivinha o ser feminino e sensual que se cumpre numa relação amorosa. As tiras de tecido que caem do tecto, lembrando um dossel, transformam-se na imagem do cárcere de que muitas vezes se torna a casa. O desencanto transforma a doçura das noites de volúpia na prisão de sentimentos que leva a actriz a arrancar os fragmentos de emoção que a ligam à casa, ao quarto. Vira as costas nuas à sua realidade e solta-se à procura de outros mares. Nas costas as palavras “E os nossos mares?” evidenciam o desejo de se entregar a um universo mais aberto. A libertação vem com a raiva e a necessidade de cortar com o que lhe é imposto. No papel é escrito: “não quero a faca nem o queijo”. Não quer o poder de decidir, mas o de apagar o tempo. Assim, o papel é rasgado com a violência com que as rugas invadem o seu rosto. A velhice, símbolo maior da maturidade, veste a mulher de emoções várias, qual actriz que vai vestindo e despindo as personagens ao sabor do que vida lhe exige. No final, a mulher só exige um “amor feinho”. Um amor que ultrapassa o deslumbramento estético exterior e procura o encontro do companheirismo, do Outro que compreende e está ao lado para o que for preciso. A mulher mais velha fala no legado que sonha deixar à filha: a transmissão de mãe para filha que suporta a memória como um fio ininterrupto, quase umbilical. Contrariando o desvanecer do corpo, a mulher pugna pela permanência da memória.
O desenho de luz de Paulo Neto, operado por Nuno Figueira, é um elemento fundamental que confere o colorido às palavras que Cláudia Andrade, numa dicção irrepreensível, nos diz. A actriz tem, de resto, um modo peculiar de nos fazer saborear as palavras ditas por si numa voz quente, cativante e bela.
Suportada pela poesia de Adélia Prado, Adília Lopes, Ana Hatherly, Ana Luísa Amaral, Elsa Lucinda, Natália Correia e Marina Colassanti, Cláudia Andrade construiu a essência do ser feminino. Escutando a autora deste projecto, dizemos com Cláudia Andrade: “Porque há palavras que dançam em mares de esparguete, mulheres desdobráveis, histórias e viagens que ainda nos apetece fazer… Ela uma vez. E se a chuva oblíqua é um convite à inclinação do teu ombro e há luas com tranças pretas e corpos que se descosturam, inventamos príncipes que não aparecem e morremos compulsivamente. Reinventamos histórias sem finais felizes, olhamo-nos ao espelho e somos lobos, fadas, demónios, monjas. Mudamos de pele, largamos lágrimas no rastilho do corpo e porque acreditamos na ocupação do mundo pelas rosas… Ela uma vez.” A poesia subiu ao palco e foi sofregamente comida pelos espectadores do Teatro Lethes. Irresistível, sensual e colorida, elevou o belo à categoria de sublime.
Falar de poesia é falar do indizível que se torna verbo. Falar de um espectáculo de poesia é verbalizar a emoção que deixou de estar contida e extravasou para o corpo, para a pele, até explodir no aplauso final. Falar do espectáculo Ela Uma Vez, de Cláudia Andrade, é tentar dizer o que se sente quando o espectáculo nos faz atingir o êxtase perante uma emoção estética.
Ela uma vez é um espectáculo concebido por cinco criadoras, inspirado na obra de sete poetisas, que dá voz ao universo feminino. Para além de divulgar escritoras pouco conhecidas pelo grande público, o espectáculo reflecte sobre a condição da mulher: os seus medos, os seus anseios, as suas fragilidades, o seu poder.
O espectáculo de Cláudia Andrade, produzido pela associação Próxima Estação, começa com uma pequena animação, de Ana Pesquita, que nos confronta com a imagem de um álbum de emoções que se foram guardando de uma forma cuidada e delicada. Mostra os sonhos de uma menina a elevarem-se, levando-a a voar com as borboletas, com os pássaros, e a voltar, brincando com os seus brinquedos.
No biombo onde foi projectado o pequeno filme de animação surge um vulto. A sombra de uma mulher, que se vai tornando cada vez mais nítida. A sombra torna-se voz e o corpo vai-se desocultando por detrás do biombo. Primeiro uma mão, depois uma cabeça que espreita, como se fosse um nascer para a vida. Por fim assume-se um corpo inteiro cujo rosto ainda está protegido, escondido por uma máscara. A actriz, menina, vai falando de sabores, de arroz doce, e vai ganhando a confiança necessária para substituir a máscara pelo seu rosto. A mulher, finalmente, nasceu e vai fazer com o público um percurso desde a infância até à velhice, passando pelas várias idades da mulher. Do vestido de bibe a mulher ganha novas formas e mostra-as num vestido vermelho e sensual. Calça os seus primeiros sapatos de salto alto e lança-se por inteiro na mágica aventura de ser mulher. Recorta os contornos do seu príncipe encantado e dança com ele, sentindo-se feliz. Essa imagem, em que Cláudia Andrade rasga a x-acto a silhueta de um homem, esculpindo o exterior à sua maneira, dançando de seguida um tango, dá-nos a percepção clara dos sonhos das jovens adolescentes que, na sua maior parte, se deixam deslumbrar pelo lado estético das relações. A rapariga dança e transmite-nos a leveza de uma existência feliz. O peso dessa felicidade entranha-se na pele e concebe uma criança, passando da juventude e da sensualidade pura para a idade madura. Nessa fase a mulher dá-se conta das suas prisões, das suas limitações, e a cenografia, inicialmente um biombo, transforma-se numa casa onde se adivinha o ser feminino e sensual que se cumpre numa relação amorosa. As tiras de tecido que caem do tecto, lembrando um dossel, transformam-se na imagem do cárcere de que muitas vezes se torna a casa. O desencanto transforma a doçura das noites de volúpia na prisão de sentimentos que leva a actriz a arrancar os fragmentos de emoção que a ligam à casa, ao quarto. Vira as costas nuas à sua realidade e solta-se à procura de outros mares. Nas costas as palavras “E os nossos mares?” evidenciam o desejo de se entregar a um universo mais aberto. A libertação vem com a raiva e a necessidade de cortar com o que lhe é imposto. No papel é escrito: “não quero a faca nem o queijo”. Não quer o poder de decidir, mas o de apagar o tempo. Assim, o papel é rasgado com a violência com que as rugas invadem o seu rosto. A velhice, símbolo maior da maturidade, veste a mulher de emoções várias, qual actriz que vai vestindo e despindo as personagens ao sabor do que vida lhe exige. No final, a mulher só exige um “amor feinho”. Um amor que ultrapassa o deslumbramento estético exterior e procura o encontro do companheirismo, do Outro que compreende e está ao lado para o que for preciso. A mulher mais velha fala no legado que sonha deixar à filha: a transmissão de mãe para filha que suporta a memória como um fio ininterrupto, quase umbilical. Contrariando o desvanecer do corpo, a mulher pugna pela permanência da memória.
O desenho de luz de Paulo Neto, operado por Nuno Figueira, é um elemento fundamental que confere o colorido às palavras que Cláudia Andrade, numa dicção irrepreensível, nos diz. A actriz tem, de resto, um modo peculiar de nos fazer saborear as palavras ditas por si numa voz quente, cativante e bela.
Suportada pela poesia de Adélia Prado, Adília Lopes, Ana Hatherly, Ana Luísa Amaral, Elsa Lucinda, Natália Correia e Marina Colassanti, Cláudia Andrade construiu a essência do ser feminino. Escutando a autora deste projecto, dizemos com Cláudia Andrade: “Porque há palavras que dançam em mares de esparguete, mulheres desdobráveis, histórias e viagens que ainda nos apetece fazer… Ela uma vez. E se a chuva oblíqua é um convite à inclinação do teu ombro e há luas com tranças pretas e corpos que se descosturam, inventamos príncipes que não aparecem e morremos compulsivamente. Reinventamos histórias sem finais felizes, olhamo-nos ao espelho e somos lobos, fadas, demónios, monjas. Mudamos de pele, largamos lágrimas no rastilho do corpo e porque acreditamos na ocupação do mundo pelas rosas… Ela uma vez.” A poesia subiu ao palco e foi sofregamente comida pelos espectadores do Teatro Lethes. Irresistível, sensual e colorida, elevou o belo à categoria de sublime.
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