Friday, March 7, 2008

A vida do teatro


Interpretar a vida de um reconhecido dramaturgo pode ser um projecto tão interessante quanto ambicioso. Como foi a sua vida antes de se tornar imortal? Como terão vivido mestres como Shakespeare, Camões, Moliére, Gil Vicente? E terão sido reconhecidos em vida, apesar do seu génio? Estas incursões pela intimidade dos autores trazem amiúde um cunho de Pirandelleano aos textos e aos espectáculos deles resultantes.
A Companhia de Teatro das Beiras, convidada pela companhia Al-Mashrah para participar no Teatro do Inverno, em Tavira, trouxe ao público um excerto da vida de Moliére, contado pelo seu admirador e dramaturgo Goldoni. Carlo Goldoni, veneziano, nasceu há 300 anos (1707) e operou no seu tempo uma profunda reforma do teatro, contribuindo definitivamente para o estabelecimento de regras e conceitos que viriam a abrir as portas do teatro moderno. A obra apresenta bastantes detalhes da vida do autor francês, trazendo-se à cena as suas virtudes e desencantos, e revelando Goldoni o seu olhar arguto sobre o mundo em mudança. “Moliére” é uma comédia biográfica, onde Goldoni mistura temas do TARTUFO com os amores de Molière e da actriz Bejart. É uma homenagem a um dos seus mestres declarados, para além de um ataque a hipócritas e maldizentes, de que tanto sofria o próprio Goldoni. A obra apresenta bastantes detalhes da vida de Molière. Algumas personagens correspondem a sujeitos reais: Valério não é outro que o comediante, Baron; Leandro é La Chapelle. Goldoni manifesta nesta obra a sua profunda admiração pelo genial autor francês e homenageia-o trazendo a cena as suas virtudes e desencantos, revelando o seu olhar arguto sobre o mundo em mudança, que é também o reino do engano onde “todos somos comediantes, já que o mundo é uma comédia”.“Moliére” tem encenação de Gil Salgueiro Nave, os cenários e figurinos são de Luís Mouro e a interpretação esteve a cargo de Fernando Landeira, António Saraiva, Sónia Botelho, Teresa Baguinho, Sara Silva, Paulo Miranda, Rafael Freire.
Goldoni escreveu uma comédia sem máscaras, em versos Martelliani, assumindo, contudo uma proximidade com os temas e as personagens da Commedia del’Arte. Valério e Foresta desempenham o papel destinado aos Zanni, Isabella e Moliére os apaixonados, a Béjart e o senhor Pirlone os pólos da intriga que querem separar os dois amantes. O final é feliz, com o casamento, o arrependimento e o perdão. Porém, se a intriga está escrita com os condimentos da dramaturgia que deu fama ao autor, a encenação fugiu ao estereótipo da Commédia del’Arte, o que foi pena. Vimos uma criada, interpretada por Teresa Braguinho muito próxima daquilo que se pode esperar de uma criada de Goldoni mas Valério, interpretado por Paulo Miranda, sóbrio e contido, esteve muito longe da inspiração de arlequim. Moliére, defendido por Fernando Landeira, mostrou-nos um Moliére ansioso, preocupado com a censura da sua peça Tartufo, deixando transparecer o egoísmo face à lealdade devida à actriz que o ajudou a conquistar a fama. Quando Béjard, interpretada por Sónia Botelho, depois de uma cena comovente, na qual se sente ultrapassada pela própria filha, diz que vai deixar a companhia de Moliére, este responde-lhe com a frieza que caracteriza alguns encenadores: actrizes há muitas. Aqui Goldoni põe a nu o paradigma da ética dentro do meio teatral: a que devemos dar maior cuidado? À lealdade para com um colega fiel que contribuiu ao longo dos anos para o crescimento do colectivo, ou a um delírio estético de um encenador que se quer consumar naquele momento? A mãe acaba por perdoar à filha e a Moliére, pondo, como qualquer actriz que ama a sua arte, o teatro acima de si própria. Moliére casa com a bela jovem e Béjard, acabada, é uma sombra da própria máscara que se habituou a usar em cena.
Ao nível da interpretação vemos um Moliére pejado de tiques supérfluos, sentado na cadeira do realizador, mas fora de cena. Vemos uma Béjard com a força exigida a uma actriz da sua natureza, um impressionante Pirlone, interpretado por António Saraiva, que para além da máscara sabe expressar todo o artifício de um hipócrita, um Valério contido, e o resto do elenco cumprindo adequadamente os seus papéis. O destaque vai, naturalmente, para Sónia Botelho, que desde a sua entrada em cena, perturba positivamente com a sua presença.O Teatro das Beiras assume-se como um projecto de descentralização para a região da Beira Interior. Tem sido preocupação presente nas escolhas do Teatro das Beiras o percurso pelos grandes momentos da história do teatro, através dos mais destacados autores: Gil Vicente, Antón Tchekhov, Strindberg, Sean Ó Casey, Goldoni, Bertolt Brecht, Tennessee Williams, entre outros. Da mesma maneira, a companhia acompanha a reflexão pedagógica sobre os currículos escolares. Daí a produção regular de teatro endereçado ao público jovem onde, a par da divulgação de textos contemporâneos, houve a preocupação de apresentar os autores nacionais que são objecto de estudo académico (Gil Vicente, Anrique da Mota, Raúl Brandão).

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