Figueira Cid apresentou um trabalho memorável no espaço alternativo eborence da Companhia A Bruxa Teatro. A partir do texto de Jean-Pierre Siméon e da tradução de Filipa Guerreiro, Figueira Cid encenou o espectáculo Stabat Mater Furiosa, ao qual Ana Leitão facultou a sua especial interpretação. Stabat Mater Furiosa é um texto que nos fala da guerra e dos gritos que ecoam em todas as mães que perderam os seus filhos num campo de batalha, ou numa sala de tortura, ou numa invasão feita intempestivamente a sua casa. Como diz a actriz no belíssimo texto inicial, “Eu sou aquela que recusa compreender, a que não quer compreender e implora, e se eu implorar não riam, nada de encolher os ombros ou murmurar, e nada de pretextos e olhos baixos para evitar a minha voz. A minha emoção não é um cão que eu passeie, não é um cãozinho a quem faça festinhas e passeie, a minha emoção é negra e pesada tem o peso do machado e o gume do sílex. E se rezo é sem deuses, se rezo é como quando se pede por favor, é a vida que peço suplico a vida e nem sei a quê ou a quem mas sei que a oração é pesada e negra, que não evoca, não comenta, não apura contas, a minha oração ela é só um momento…”. A oração é de alguém que não se conforma com o Homem da Guerra. Que tinha uma vida pacata e feliz até ao momento em que vê a sua família despedaçada e que insiste em não compreender as razões que os grandes pensadores criam para a justificar. “Eu sou aquela que faz por não compreender, por não te entender, por não entender as tuas razões. Odeio as tuas razões, silencio as tuas razões”.
Stabat Mater é o hino da mãe dolorosa junto ao corpo do seu filho morto, com a consciência de que os filhos de hoje são os guerreiros e os assassinos de amanhã: “Que mamem no seio da mãe o remorso do que ainda não fizeram, porque tão claro como duram os sois no azul eterno, as crianças de hoje são os guerreiros de amanhã, esta é a minha verdade, é mais antiga que a mais antiga estrela nascida na noite das sombras, conceber é já continuar a genealogia do assassínio. Um texto que acaba com um sonho. Um sonho onde os homens são frágeis, mais frágeis do que o junquilho, onde se pode novamente ter esperança.
O texto de Jean-Pierre Siméon é uma oração que põe o dedo na ferida mas que termina com a possibilidade da mudança, se o Homem da Guerra quiser comparar-se ao junquilho. Mas o sonho permanece, porque “é a obstinação da cerejeira que faz transbordar a luz”.
O espectáculo começa com a actriz encostada junto a uma parede, sentada num chão de areia. Descalça, enverga um traje vermelho com uma estola azul, lembrando a habitual veste de Maria junto à cruz, velando o seu filho morto. Quando Ana Leitão começa a falar a sala parece ganhar uma amplificação surpreendente, tal é o efeito que a voz da actriz provoca. Ana Leitão diz a oração aos filhos mortos com a dor e a sobriedade que se espera de uma figura em sofrimento. Um sofrimento que não recusa a esperança, conjugada com a força de uma cerejeira em flor. Todo o desempenho da actriz é irrepreensível. Mesmo quando é acompanhada por alguns momentos de percussão sendo a voz, naturalmente, amplificada, a postura mantém-se com a dignidade esperada. Há um momento em que a mãe dolorosa entra numa espécie de relicário, dentro do qual partilha os horrores vividos e anuncia os cenários sonhados. “Criaremos os nossos filhos, sem vós, apesar de vós e contra vós, o seu vício será a doçura, juro-vos que serão mais ingénuos do que as flores, quando encontrarem uma pedra irão procurar as cores para a pintar, quando encontrarem um pau, irão plantá-lo para que dê laranjas.” Neste cenário branco, despojado, a actriz partilha o seu sofrimento com a dor de todas as mães dolorosas e despoja-se de si, para se fundir nas imagens de dor que são projectadas dentro do relicário. Admirável. Belo como o lamentoso hino que lhe serviu de mote. Uma autêntica oração a uma deusa pagã que gerou os filhos para os ver morrer no campo de batalha. Um trabalho obrigatório a ver nos antigos celeiros da EPAC, em Évora. Neste mês de abundância teatral podemos dar-nos ao luxo de escolher. E se os programadores não primam por trazer ao Algarve este bom teatro que se faz no nosso país, o bom teatro merece que nos desloquemos cerca de 200 quilómetros para o apreciar.
Stabat Mater é o hino da mãe dolorosa junto ao corpo do seu filho morto, com a consciência de que os filhos de hoje são os guerreiros e os assassinos de amanhã: “Que mamem no seio da mãe o remorso do que ainda não fizeram, porque tão claro como duram os sois no azul eterno, as crianças de hoje são os guerreiros de amanhã, esta é a minha verdade, é mais antiga que a mais antiga estrela nascida na noite das sombras, conceber é já continuar a genealogia do assassínio. Um texto que acaba com um sonho. Um sonho onde os homens são frágeis, mais frágeis do que o junquilho, onde se pode novamente ter esperança.
O texto de Jean-Pierre Siméon é uma oração que põe o dedo na ferida mas que termina com a possibilidade da mudança, se o Homem da Guerra quiser comparar-se ao junquilho. Mas o sonho permanece, porque “é a obstinação da cerejeira que faz transbordar a luz”.
O espectáculo começa com a actriz encostada junto a uma parede, sentada num chão de areia. Descalça, enverga um traje vermelho com uma estola azul, lembrando a habitual veste de Maria junto à cruz, velando o seu filho morto. Quando Ana Leitão começa a falar a sala parece ganhar uma amplificação surpreendente, tal é o efeito que a voz da actriz provoca. Ana Leitão diz a oração aos filhos mortos com a dor e a sobriedade que se espera de uma figura em sofrimento. Um sofrimento que não recusa a esperança, conjugada com a força de uma cerejeira em flor. Todo o desempenho da actriz é irrepreensível. Mesmo quando é acompanhada por alguns momentos de percussão sendo a voz, naturalmente, amplificada, a postura mantém-se com a dignidade esperada. Há um momento em que a mãe dolorosa entra numa espécie de relicário, dentro do qual partilha os horrores vividos e anuncia os cenários sonhados. “Criaremos os nossos filhos, sem vós, apesar de vós e contra vós, o seu vício será a doçura, juro-vos que serão mais ingénuos do que as flores, quando encontrarem uma pedra irão procurar as cores para a pintar, quando encontrarem um pau, irão plantá-lo para que dê laranjas.” Neste cenário branco, despojado, a actriz partilha o seu sofrimento com a dor de todas as mães dolorosas e despoja-se de si, para se fundir nas imagens de dor que são projectadas dentro do relicário. Admirável. Belo como o lamentoso hino que lhe serviu de mote. Uma autêntica oração a uma deusa pagã que gerou os filhos para os ver morrer no campo de batalha. Um trabalho obrigatório a ver nos antigos celeiros da EPAC, em Évora. Neste mês de abundância teatral podemos dar-nos ao luxo de escolher. E se os programadores não primam por trazer ao Algarve este bom teatro que se faz no nosso país, o bom teatro merece que nos desloquemos cerca de 200 quilómetros para o apreciar.
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