A última produção do grupo Al-Masrah teve a assinatura de Pedro Ramos na encenação e a interpretação do próprio encenador e de cinco actores formados pelo grupo universitário Sin-Cera: Alice Martins, Hugo Sancho, Rui Cabrita, Susana Neves e Verónica Guerreiro. Os autores são muitos, representando algumas das páginas mais significativas que se escreveram para teatro. Desde Sófocles a Almada Negreiros, o espectáculo faz-nos percorrer uma viagem sobre as várias épocas vários autores, várias correntes e estilos de teatro, uma uniformidade na estética, na pureza, na limpeza, no rigor da representação.
O espectáculo começa com uma provocação dos actores. O público, enclausurado no minúsculo hall de entrada do antigo edifício da Corredoura de Tavira, desejoso de entrar, depara com uma actriz que vai apontando o dedo a este ou aquele indivíduo, convidando-o a entrar. Os outros têm de esperar pela vontade e pelo olhar dos porteiros. Se alguém se antecipa na ânsia de entrar, é-lhe barrada a entrada. Um jogo irónico que predispõe o público para o recolhimento que deve haver logo na situação da entrada.
Este teatro informal atira-nos literalmente para o meio de uma das mais significativas tragédias da antiguidade clássica: Édipo Rei. Vemos uma Jocasta marcada pela dor, numa interpretação surpreendente de Verónica Guerreiro, tirando partido dos seus longos cabelos no acto do suicídio. Vemos Hugo Sancho mais maduro, interpretando um Édipo atormentado por não ter conseguido fugir ao seu destino. Édipo e Jocasta unidos pelo laço lilás do pathos de um destino sofrido. As outras personagens, evoluindo numa coreografia rigorosa que dá conta do sofrimento característico da tragédia. Depois de Édipo ter furado os olhos aparece uma figura numa imagem projectada na cortina preta, narrando o epílogo, interpretado por José Louro. Essa imagem lindíssima, muito bem conseguida, faz-nos pensar num espectro oracular que anuncia a tragédia com a mesma serenidade com que dá notícia de um bom dia. Resolvida essa cena, os adereços mudam para cintos de cor vermelha e entram três actores, uma mesa e vários adereços interpretando a “Ceia dos Cardeais” de Júlio Dantas. Os cardeais comiam, bebiam, falavam sobre ao mor, e de repente a comida e o guardanapo tornam-se bonecos de Todo-o-mundo e Ninguém que contracenam com os dois demónios vicentinos Belzebu e Dinato, tornados contemporâneos com os artifícios das novas tecnologias, o sempre actual auto de Todo-o-Mundo e Ninguém. Por esta ligação de histórias, personagens e actores se pode antever o que virá a seguir. As histórias saem fluidas passando de Beaumarchais a Beckett, de Beckett a Ionesco, de Ionesco a Tchecov e por aí fora até culminar num dos belíssimos textos de Almada. Textos sobre o teatro, que marcaram a história do teatro, pontuados por pormenores que se distinguem pela cor, pela atitude dos actores, pela luz. No fundo estes seis actores fizeram-nos acreditar que se pode fazer um percurso orgânico por uma história do teatro em que se tocam algumas das opções mais significativas da estética teatral. Pudemos apreciar uma interpretação mais clássica na tragédia grega, mais jocosa no texto vicentino, mais expressiva na técnica da máscara, mais realista em Tchecov, por exemplo. Um apontamento digno de nota foi a grande crítica de Beckett à cultura do entretenimento, ilustrado por uma magnífica máquina de misturar e triturar o conhecimento para a criação de empacotados para distribuir tipo franchising. A máquina criada por Tó Quintas é bastante ilustrativa da cultura de pacotilha que o autor quis criticar. Outra nota digna de registo é a cumplicidade que se sente entre os actores, sobretudo entre Alice Martins e Susana Neves. Hugo Sancho surpreendeu pela positiva, talvez porque o encenador o tivesse dirigido tentando ultrapassar a sua natural fleuma. Rui Cabrita fez-nos vibrar no play-back da Edith Piaf e mostrou um rigor e uma maturidade em todo o espectáculo que surpreendeu que tem apreciado os seus anteriores trabalhos. Verónica Guerreiro, mais madura e convincente, saudou-nos com um ditoso regresso. Pedro Ramos mostrou aqui também o excelente actor que sempre nos mostrou ser. Quem não se lembra de Quereia no Calígula levado à cena pela ACTA em 2001 ou de Peter em Zoo Story? De resto, toda esta encenação é marcada pelo rigor: na geometria milimétrica das marcações, nas respirações, nos movimentos, e até nas mudanças de cena e de operador de luz.
Pedro Ramos já tinha dado mostra do seu valor como encenador no trabalho que fez para a ACTA do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. A melhor que eu pude apreciar até hoje. Infelizmente para o público em geral, essa encenação só pôde ser apreciada pelas escolas. Hoje é um encenador com a maturidade exigida a uma companhia profissional. Este trabalho, informal no nome, foi pautado pela rigidez, mas também pela elegância e pelo bom gosto. Pela crítica social e pelo humor. Nada foi deixado ao acaso. Nestes casos só nos resta juntar a nossa voz à de Piaf e cantar: Bravo!
O espectáculo começa com uma provocação dos actores. O público, enclausurado no minúsculo hall de entrada do antigo edifício da Corredoura de Tavira, desejoso de entrar, depara com uma actriz que vai apontando o dedo a este ou aquele indivíduo, convidando-o a entrar. Os outros têm de esperar pela vontade e pelo olhar dos porteiros. Se alguém se antecipa na ânsia de entrar, é-lhe barrada a entrada. Um jogo irónico que predispõe o público para o recolhimento que deve haver logo na situação da entrada.
Este teatro informal atira-nos literalmente para o meio de uma das mais significativas tragédias da antiguidade clássica: Édipo Rei. Vemos uma Jocasta marcada pela dor, numa interpretação surpreendente de Verónica Guerreiro, tirando partido dos seus longos cabelos no acto do suicídio. Vemos Hugo Sancho mais maduro, interpretando um Édipo atormentado por não ter conseguido fugir ao seu destino. Édipo e Jocasta unidos pelo laço lilás do pathos de um destino sofrido. As outras personagens, evoluindo numa coreografia rigorosa que dá conta do sofrimento característico da tragédia. Depois de Édipo ter furado os olhos aparece uma figura numa imagem projectada na cortina preta, narrando o epílogo, interpretado por José Louro. Essa imagem lindíssima, muito bem conseguida, faz-nos pensar num espectro oracular que anuncia a tragédia com a mesma serenidade com que dá notícia de um bom dia. Resolvida essa cena, os adereços mudam para cintos de cor vermelha e entram três actores, uma mesa e vários adereços interpretando a “Ceia dos Cardeais” de Júlio Dantas. Os cardeais comiam, bebiam, falavam sobre ao mor, e de repente a comida e o guardanapo tornam-se bonecos de Todo-o-mundo e Ninguém que contracenam com os dois demónios vicentinos Belzebu e Dinato, tornados contemporâneos com os artifícios das novas tecnologias, o sempre actual auto de Todo-o-Mundo e Ninguém. Por esta ligação de histórias, personagens e actores se pode antever o que virá a seguir. As histórias saem fluidas passando de Beaumarchais a Beckett, de Beckett a Ionesco, de Ionesco a Tchecov e por aí fora até culminar num dos belíssimos textos de Almada. Textos sobre o teatro, que marcaram a história do teatro, pontuados por pormenores que se distinguem pela cor, pela atitude dos actores, pela luz. No fundo estes seis actores fizeram-nos acreditar que se pode fazer um percurso orgânico por uma história do teatro em que se tocam algumas das opções mais significativas da estética teatral. Pudemos apreciar uma interpretação mais clássica na tragédia grega, mais jocosa no texto vicentino, mais expressiva na técnica da máscara, mais realista em Tchecov, por exemplo. Um apontamento digno de nota foi a grande crítica de Beckett à cultura do entretenimento, ilustrado por uma magnífica máquina de misturar e triturar o conhecimento para a criação de empacotados para distribuir tipo franchising. A máquina criada por Tó Quintas é bastante ilustrativa da cultura de pacotilha que o autor quis criticar. Outra nota digna de registo é a cumplicidade que se sente entre os actores, sobretudo entre Alice Martins e Susana Neves. Hugo Sancho surpreendeu pela positiva, talvez porque o encenador o tivesse dirigido tentando ultrapassar a sua natural fleuma. Rui Cabrita fez-nos vibrar no play-back da Edith Piaf e mostrou um rigor e uma maturidade em todo o espectáculo que surpreendeu que tem apreciado os seus anteriores trabalhos. Verónica Guerreiro, mais madura e convincente, saudou-nos com um ditoso regresso. Pedro Ramos mostrou aqui também o excelente actor que sempre nos mostrou ser. Quem não se lembra de Quereia no Calígula levado à cena pela ACTA em 2001 ou de Peter em Zoo Story? De resto, toda esta encenação é marcada pelo rigor: na geometria milimétrica das marcações, nas respirações, nos movimentos, e até nas mudanças de cena e de operador de luz.
Pedro Ramos já tinha dado mostra do seu valor como encenador no trabalho que fez para a ACTA do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. A melhor que eu pude apreciar até hoje. Infelizmente para o público em geral, essa encenação só pôde ser apreciada pelas escolas. Hoje é um encenador com a maturidade exigida a uma companhia profissional. Este trabalho, informal no nome, foi pautado pela rigidez, mas também pela elegância e pelo bom gosto. Pela crítica social e pelo humor. Nada foi deixado ao acaso. Nestes casos só nos resta juntar a nossa voz à de Piaf e cantar: Bravo!
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