Tuesday, November 28, 2006

O cinema a três dimensões



Cinemascoope, de André Murraças, tenta ser uma solução de compromisso entre técnicas e linguagens utilizadas no teatro e no cinema. Interpretado por Gil Silva, Miguel Murta, Ricardo Mendonça e Teresa da Silva o espectáculo apresentado no CAPa entre os dias 28 e 31 de Julho, apresenta ao nível do elenco um ligeiro desequilíbrio relativamente à actriz, por força de uma cumplicidade masculina trabalhada desde há alguns anos. No entanto, esse desequilíbrio, se bem que algo notório ao princípio, vai-se atenuando ao longo da representação. A criação colectiva do texto, depois trabalhada dramaturgicamente por Murraças, dá voz aos nossos mais banais pré-conceitos, questões, reflexões e críticas sobre o teatro ou sobre o cinema. Que temas tratar, que objectivos, a quem serve? Quem vai ao teatro? Quem vai ao cinema? E ver o quê? A partir do banal e recorrente tema: rapaz encontra rapariga / rapaz conversa com rapariga / rapaz envolve-se com rapariga / rapaz deixa a rapariga / rapariga persegue rapaz / rapariga ameaça rapaz com uma arma de fogo / rapariga mata-se com uma arma de fogo, há uma reconstrução interessante que roça a repetição pós-moderna do sistema de signos e sinais que uma cena pode conter. Sob o signo de Apolo, o ritmo mantém-se, as personagens mudam, modificando também a relação entre os géneros. Talvez parecesse forçado o sorriso de Gil Silva quando tomou o papel da rapariga, dando sub-repticiamente ao público uma leitura crítica da situação. No entanto essa leitura foi limpa pela posterior interpretação de Miguel Murta. Neste espectáculo há um cruzamento constante de referências desde a representação cénica, a alusão ao grande plano, o ritmo da tensão dramática, o desfecho dramático com um destino trágico e irremediável. A alusão a uma estética absurda que sai do quotidiano quando nos é apresentada uma personagem que participa no final trágico sem nunca se voltar. As repetições de personagens diferentes convidam a novas interpretações e novas estruturas de sentido, novos elementos geradores de uma outra significação, o que confere ao trabalho uma riqueza notável. Lembramo-nos de Fumer e de Pas Fumer de Alain Resnais, ou do mais recente Melinda e Melida de Woody Allen que cruzam as supostas linhas de um destino feito por nós. As referências cruzam-se neste universo laboratorial em que se cozinha o teatro com ingredientes do cinema, delimitando o espaço cénico à dimensão de um enquadramento. Os textos pretensamente absurdos não são brilhantes. De qualquer forma surpreendem pela maneira como são postos em cena, pelo ritmo que o encenador lhes impôs. As referências muito bipolares, que já fazem parte do nosso imaginário, relativamente ao cinema europeu versus cinema norte-americano eram recorrentes mas surtiam o efeito desejado. As nossas memórias, que crescem com os filmes da nossa vida, são bem exploradas e culminam no jogo, muito em voga em alguns círculos de amigos, no qual que se adivinha através de gestos o nome de um filme, leva-nos de imediato ao filme de Jennifer Jason Leigh e de Allan Cumming e às nós próprios quando nos divertíamos ao fazê-lo. Uma interacção inteligente com o público, evitando a exposição agressiva e perturbadora, que levou muitos espectadores a abandonarem de vez as salas de teatro nos fins dos anos 70 com medo que os actores os obrigassem a ir ao palco. Esta interacção subtil faz com que o espectador se sinta parte integrante do espectáculo sem o importunar, pois os nomes dos filmes que os actores interpretavam em mímica tinham sido anteriormente escritos por ele. Havia então um divertido jogo em que o público também torcia pelo actor que tentava descodificar o nome do filme. Com este jogo quase se podia fazer um estudo estatístico sobre os gostos cinéfilos de quem vai ao teatro, pois se apareciam filmes como o Rambo – A Fúria do Herói, a maior parte dos títulos que os actores tinham como desafio para mimar eram referências marcantes do cinema europeu.
Ao nível das luzes o espectáculo não consegue fugir à síndrome do aquário em que quase todos os espectáculos não profissionais, inevitavelmente, caem. No entanto, quanto à concepção dos figurinos, se bem que o dos actores fosse inexistente, o figurino de Teresa da Silva estava bem conseguido, pois para além de realçar a sua bela silhueta, evocava remotamente a nouvelle vague do cinema francês. Com uma voz bonita capaz de interpretar uma canção de forma convincente, Teresa da Silva tem contudo ainda muito trabalho a fazer ao nível da voz falada para teatro. A utilização esporádica do microfone resulta porque soube não ser exaustiva. O microfone ampliava a intenção de um momento que se partilha através de uma canção ou de uma grata memória. Gil Silva partilhou connosco a sua vocação de cantor romântico numa caricatura notável, de que Ricardo Mendonça nos salva a tempo.
O grupo primou por apresentar, dentro das limitações orçamentais, um prospecto que consegue dar ao público as informações essenciais que devem constar em qualquer espectáculo. Fugindo da habitual formato da folhinha A4 ou A5, muitas vezes inexistente, mesmo em grupos universitários, o público ficou na posse de um tríptico que inclui um texto do encenador, a sua referência biográfica, uma alusão subtil ao encontro do público com o espectáculo, fotografias de cena e uma ficha técnica completíssima. Um exemplo a seguir.
Ao nível da encenação há um rigor e uma precisão invulgares que supera algum trabalho de actor que ainda há por fazer. Se já conhecíamos alguma da obra de André Murraças e reconhecíamos nele o talento de um jovem escritor, com este trabalho Murraças entra definitivamente para a história dos jovens dramaturgistas e encenadores que fogem à vulgaridade a apresentam um trabalho digno de registo. Foge ao formalismo muitas vezes incompreensível para o público em geral, oferecendo-nos um humor inteligente. Na globalidade é um trabalho de referência que homenageia o cinema através do efémero suporte do teatro, cruzando linguagens e obtendo um resultado francamente positivo. É de apostar nesta forma profissional e honesta de fazer teatro, que prima pela formação e em que o público sai do espectáculo certo de ter assistido a um trabalho sério e descomprometido intelectualmente. Parafraseando o texto da folha de sala: “Quatro actores. É claro que é uma história de amor.”

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