Como é que um facto de uma intensa manifestação de humanidade, se pode transformar no pior pesadelo para o seu executante? Como é que um beijo dado a um ser humano no momento da sua morte, como sinal de profundo respeito pela vida humana, se pode tornar num acto hediondo aos olhos dos outros? Este é o ponto de partida da peça de Nelson Rodrigues O Beijo no Asfalto, que originou o espectáculo levado a cena em Tavira pela co-produção entre as Companhias Baal 17 e AL-Masrah. É difícil encontrar uma co-produção em que as emoções e as cumplicidades estejam tão sintonizadas como nesta que uniu uma companhia do Algarve e uma do Alentejo. Um equilíbrio assinalável na qualidade de representação e na frescura das interpretações. O texto, de uma violência extrema, mostra-nos tal como nos anos sessenta, a homofobia pode destruir a vida de uma pessoa. Como é que uma notícia de jornal, feita por uma jornalista sem escrúpulos, pode tornar horrível um acto sublime?
A encenação de Rui Ramos, assente no trabalho de actor, é meticulosa e cuidada. Atento aos pormenores, ao ritmo das emoções, Rui Ramos conseguiu abrir uma multiplicidade de cenários ao espectador a partir de uma caixa negra e uma cadeira. Discutível a inserção dos retratos físicos e psicológicos das personagens antes de elas entrarem em cena, se bem que as letras dactilografadas no écan negro introduziam o espectador, não tanto no universo da personagem, mas no mundo do jornalismo, uma vez que o anacrónico som da máquina de escrever permanece no imaginário colectivo de uma determinada geração. O espaço vazio foi sendo preenchido meticulosamente pelas linhas invisíveis das marcações dos actores que realizavam percursos calculados com rigor. A luz, operada por Mafalda Oliveira, estava adequada, se bem que demasiado luminosa em certos momentos mais sombrios do espectáculo.
A homofobia continua a ser uma questão complexa no século XXI e a ética das pessoas que escrevem, causando por vezes danos irrecuperáveis aos outros, não o é menos. Quem não se lembra das “notícias” sobre o falso arrastão de Quarteira em que uma jornalista em directo dizia com a maior das serenidades que os rapazes da Cova da Moura “quase de certeza que se estavam a preparar para fazer um arrastão”? No caso do texto de Nelson Rodrigues, as personagens são caricaturas dos modelos que convivem connosco. Por isso os reconhecemos. Temos a jornalista sem ética, o polícia corrupto, o homem que ama sem o poder admitir, e que por isso se torna cruel, a mulher que não ama o suficiente para acreditar no seu homem, a vítima da ignorância que se deixa enredar nas malhas da maldade e presta testemunhos falsos. E a vítima, demasiado frágil e honesta para ser levada a sério. Material suficiente para a criação de vários conflitos. O poder das palavras escritas, que passam a ser verdade a partir do momento em que são lidas. Tudo o que vem a seguir toma o efeito normal do turbilhão que se desenvolve em catadupa, apesar dos posteriores desenvolvimentos. Quem lava a face de uma suspeita? Todos somos suficientemente terríveis para a fazer circular e terrivelmente cruéis para nela acreditar. Por isso Rui Ramos não precisava de ter caricaturado de forma tão exagerada a figura da jornalista, bem defendida por Sónia Botelho. O ar licencioso e indecoroso com que Rui Ramos vestiu a personagem de Piedade Oliveira retira-lhe credibilidade, pois a falta de ética não se manifesta na aparência. Talvez não seja por acaso que todas as vilãs, desde a bruxa má da Bela Adormecida até Cruella De Ville são-nos apresentadas como a exuberância da elegância. E a lascívia que a jornalista mostra permanentemente também contribui para a não credibilidade da personagem. O inspector, auto encenado, é de longe a personagem mais débil do espectáculo. Amparado num figurino que lhe exalta o mau gosto, não transparece o suficiente do cinismo que um pobre diabo à espera de uma promoção que nunca chega, deve ter. A primeira cena em que o inspector Cunha contracena com Piedade Ribeiro está muito desequilibrada, pois a jornalista exagera na postura de dominadora, com um figurino que lhe suja completamente a personagem. Esse exagero não se equilibra com o jogo de poder que o inspector deveria dar, mas não consegue. O espectáculo começa a tornar-se interessante quando passamos para a cena em que Celinha, magistralmente interpretada por Susana Nunes, contracena com os seus dois irmão: Dália (Sandra Serra) e João Maria (Pedro Ramos). Nestas personagens tudo está na medida certa: a atitude, o figurino, a emoção, a contracena. Talvez seja aqui que efectivamente o espectáculo começa porque é aqui que começamos a acreditar nele. O desempenho de Susana Nunes destaca-se porque nos faz acreditar que é uma mulher delicada, bem-nascida, que sempre pertenceu a um meio social elevado, sendo requintada sem o querer dar a entender. Dália, um pouco paradoxalmente, já não partilha da elegância da irmã, revelando-se uma jovem mulher cuja carência esconde a sua beleza. Mas Sandra Serra dá a essa opção dramatúrgica a representação adequada. Pedro Ramos, interpretando João Maria, posiciona-se no mesmo estatuto social da irmã, com o mesmo à vontade que Susana Nunes. Marco Ferreira dá-nos a interpretação de um Armando que nos prende até ao fim e com o qual sentimos cumplicidade. Sofremos, porque sabemos que tudo aquilo pelo qual Armando passa é real. Excelente desempenho, fazendo-nos quase desejar morrer com ele, ou ajudá-lo a fugir, fruto do turbilhão de acontecimentos que delimita a fronteira entre a culpa e a inocência. Susana Romão também está convincente nos pequenos papéis que defende. O da viúva, no entanto, é completamente destruído pela intromissão da caricatura da jornalista.
Este trabalho pode ter como leitura perigosa a perversidade dos homossexuais, que assassinam quem não podem amar livremente. No entanto, uma reflexão mais profunda leva-nos a perceber a disfunção da personalidade como fruto de uma repressão social e de uma auto censura imposta pela negação dos próprios sentimentos.
O programa de sala, em formato de jornal impõe-se pela qualidade e pela adequação. Uma aposta na qualidade que, à excepção da ACTA e das Ideias do Levante, os grupos de teatro deixaram de fazer.
Bonita a homenagem ao amor e às canções cantadas no sotaque de Nelson Rodrigues, contextualizando o espectador.
Neste espectáculo, mais uma vez se provou que Aristóteles estava certo quando afirmava que nas tragédias sofremos pelas personagens e apiedamo-nos por nós, obrigando-nos a um exame de consciência. Uma co-produção que deu bons frutos e que nos mostrou, uma vez mais, como Susana Nunes é uma actriz maior, mostrando verdade independentemente do registo e da personagem.
A encenação de Rui Ramos, assente no trabalho de actor, é meticulosa e cuidada. Atento aos pormenores, ao ritmo das emoções, Rui Ramos conseguiu abrir uma multiplicidade de cenários ao espectador a partir de uma caixa negra e uma cadeira. Discutível a inserção dos retratos físicos e psicológicos das personagens antes de elas entrarem em cena, se bem que as letras dactilografadas no écan negro introduziam o espectador, não tanto no universo da personagem, mas no mundo do jornalismo, uma vez que o anacrónico som da máquina de escrever permanece no imaginário colectivo de uma determinada geração. O espaço vazio foi sendo preenchido meticulosamente pelas linhas invisíveis das marcações dos actores que realizavam percursos calculados com rigor. A luz, operada por Mafalda Oliveira, estava adequada, se bem que demasiado luminosa em certos momentos mais sombrios do espectáculo.
A homofobia continua a ser uma questão complexa no século XXI e a ética das pessoas que escrevem, causando por vezes danos irrecuperáveis aos outros, não o é menos. Quem não se lembra das “notícias” sobre o falso arrastão de Quarteira em que uma jornalista em directo dizia com a maior das serenidades que os rapazes da Cova da Moura “quase de certeza que se estavam a preparar para fazer um arrastão”? No caso do texto de Nelson Rodrigues, as personagens são caricaturas dos modelos que convivem connosco. Por isso os reconhecemos. Temos a jornalista sem ética, o polícia corrupto, o homem que ama sem o poder admitir, e que por isso se torna cruel, a mulher que não ama o suficiente para acreditar no seu homem, a vítima da ignorância que se deixa enredar nas malhas da maldade e presta testemunhos falsos. E a vítima, demasiado frágil e honesta para ser levada a sério. Material suficiente para a criação de vários conflitos. O poder das palavras escritas, que passam a ser verdade a partir do momento em que são lidas. Tudo o que vem a seguir toma o efeito normal do turbilhão que se desenvolve em catadupa, apesar dos posteriores desenvolvimentos. Quem lava a face de uma suspeita? Todos somos suficientemente terríveis para a fazer circular e terrivelmente cruéis para nela acreditar. Por isso Rui Ramos não precisava de ter caricaturado de forma tão exagerada a figura da jornalista, bem defendida por Sónia Botelho. O ar licencioso e indecoroso com que Rui Ramos vestiu a personagem de Piedade Oliveira retira-lhe credibilidade, pois a falta de ética não se manifesta na aparência. Talvez não seja por acaso que todas as vilãs, desde a bruxa má da Bela Adormecida até Cruella De Ville são-nos apresentadas como a exuberância da elegância. E a lascívia que a jornalista mostra permanentemente também contribui para a não credibilidade da personagem. O inspector, auto encenado, é de longe a personagem mais débil do espectáculo. Amparado num figurino que lhe exalta o mau gosto, não transparece o suficiente do cinismo que um pobre diabo à espera de uma promoção que nunca chega, deve ter. A primeira cena em que o inspector Cunha contracena com Piedade Ribeiro está muito desequilibrada, pois a jornalista exagera na postura de dominadora, com um figurino que lhe suja completamente a personagem. Esse exagero não se equilibra com o jogo de poder que o inspector deveria dar, mas não consegue. O espectáculo começa a tornar-se interessante quando passamos para a cena em que Celinha, magistralmente interpretada por Susana Nunes, contracena com os seus dois irmão: Dália (Sandra Serra) e João Maria (Pedro Ramos). Nestas personagens tudo está na medida certa: a atitude, o figurino, a emoção, a contracena. Talvez seja aqui que efectivamente o espectáculo começa porque é aqui que começamos a acreditar nele. O desempenho de Susana Nunes destaca-se porque nos faz acreditar que é uma mulher delicada, bem-nascida, que sempre pertenceu a um meio social elevado, sendo requintada sem o querer dar a entender. Dália, um pouco paradoxalmente, já não partilha da elegância da irmã, revelando-se uma jovem mulher cuja carência esconde a sua beleza. Mas Sandra Serra dá a essa opção dramatúrgica a representação adequada. Pedro Ramos, interpretando João Maria, posiciona-se no mesmo estatuto social da irmã, com o mesmo à vontade que Susana Nunes. Marco Ferreira dá-nos a interpretação de um Armando que nos prende até ao fim e com o qual sentimos cumplicidade. Sofremos, porque sabemos que tudo aquilo pelo qual Armando passa é real. Excelente desempenho, fazendo-nos quase desejar morrer com ele, ou ajudá-lo a fugir, fruto do turbilhão de acontecimentos que delimita a fronteira entre a culpa e a inocência. Susana Romão também está convincente nos pequenos papéis que defende. O da viúva, no entanto, é completamente destruído pela intromissão da caricatura da jornalista.
Este trabalho pode ter como leitura perigosa a perversidade dos homossexuais, que assassinam quem não podem amar livremente. No entanto, uma reflexão mais profunda leva-nos a perceber a disfunção da personalidade como fruto de uma repressão social e de uma auto censura imposta pela negação dos próprios sentimentos.
O programa de sala, em formato de jornal impõe-se pela qualidade e pela adequação. Uma aposta na qualidade que, à excepção da ACTA e das Ideias do Levante, os grupos de teatro deixaram de fazer.
Bonita a homenagem ao amor e às canções cantadas no sotaque de Nelson Rodrigues, contextualizando o espectador.
Neste espectáculo, mais uma vez se provou que Aristóteles estava certo quando afirmava que nas tragédias sofremos pelas personagens e apiedamo-nos por nós, obrigando-nos a um exame de consciência. Uma co-produção que deu bons frutos e que nos mostrou, uma vez mais, como Susana Nunes é uma actriz maior, mostrando verdade independentemente do registo e da personagem.
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