Wednesday, November 14, 2007

Um, Dois e... Humor inteligente!


Ainda bem que há programadores que investem em espectáculos de humor que não se reduzem à piada fácil, à graçola com conotações brejeiras ou ao palavrão. Filipe Crawford há muito tempo que tem vindo a mostrar que o humor inteligente existe e o Teatro Lethes tem-no recebido amiúde. Produções como As Andorinhas Ingénuas, de Roland Dubillard As Desventuras de Isabella, o Santo Jogral Francisco, ou Arlequim Servidor de Dois Amos, de Goldoni, sempre com encenações de Filipe Crawford, apresentadas no emblemático teatro de Faro, mostram bem que o binómio divertida e inteligente é possível.
No passado dia 8 de Novembro Filipe Crawford e Rui Paulo apresentaram o espectáculo Monstros Sagrados, baseado nas obras de Roland Dubillard Les Diaboliques e Les Nouveaux Diablogues. É nestas obras, retiradas de sketchs escritos para teatro radiofónico e para café-teatro que o autor cria personagens como o Um e o Dois. Estas personagens vão dialogando ao longo de oito pequenas histórias com diálogos acerca de cenas do dia-a-dia mas que relatam situações absurdas, que todos nós, de quando em vez, vamos vivendo.
Vestidos com um fato escuro de executivo, apresentam pormenores divergentes da sobriedade dominante, como as gravatas, as meias e os suspensórios, todos adereços de cor vermelhos. O desequilíbrio, o pequeno pormenor absurdo no meio de uma vida regrada. Munidos de uma verdadeira cumplicidade cénica Filipe Crawford e Rui Paulo divertem porque retratam os absurdos inerentes ao nosso tempo, como os mitos urbanos. A primeira história, o Papa-Roscas, é o paradigma das crenças contadas pelas avós e que permanecem no nosso imaginário até à idade adulta. O Velho do Saco, o Papão, o Pai do Céu a ralhar com os homens nas noites de tempestade, são exemplos do que o Papa-Roscas representa. Nessa primeira cena o Um e o Dois vão às escuras ao último patamar do prédio para descobrirem o Papa-Roscas. O pássaro mítico de que a avó do Um falava quando lhe contava histórias. Nunca o encontrou mas todos os dias permanece na sua busca, regimentando companheiros para tão inusitada aventura. Conta a história do avô, que viu um papa-rosquinhas no seu berçário, ou seja, no frigorífico, e relata o canto de despedida que esse ser mítico profere antes de morrer. Divertido e poético o Papa-Roscas devolve-nos às memórias do aconchego das histórias da infância e do sonho. A mudança de cena, protagonizada por Guilherme Noronha faz-se iluminada por um desenho projectado no ciclorama identificando a próxima história. Guilherme Noronha assume-se como um “homem sombra”, funcionando como aquele que está lá mas que apenas se adivinha a presença. A segunda história, o suicídio, fala do Jorge, o amigo com o qual nunca se pode contar. Nem um suicídio conseguiu fazer de forma decente, pois falhou a sua intenção. E um amigo não pode destruir assim a confiança dos seus comparças! Esta história, ao contrário dos amigos se congratularem pelo seu companheiro ainda estar vivo, mostra de forma absurda o desencanto que ambos tiveram ao saberem da tentativa falhada do amigo. A mudança de cena foi feita também com ligeireza, mostrando um Guilherme Noronha solto. A dançar enquanto mudava os cubos pretos, a cenografia de base do espectáculo. A noção inadequada do palco do teatro Lethes poderia ter tido um desfecho grave, mas Guilherme Noronha deu a volta por cima à inusitada queda.
A terceira história, apesar de engraçada e absurda retirou o sorriso a alguns espectadores. Talvez não hajam temas tabu na comédia. Mas quando a memória de cerca de 30 anos ainda permanece viva é talvez doloroso estar a assistir a uma história cómica sobre alguém que está a ser torturado. Pode ser por causa de uma esferográfica, pode ser com um ralador de queijo, mas continua a ser um quadro arrepiante de tortura a que o autor não soube dar a volta de modo a ficar suficientemente absurdo para nos rirmos dele. Por isso foi um alívio quando esse quadro acabou e os actores se encontram perdidos no mar. Os três actores simulando dois passageiros num barco formam uma composição forte que suporta imageticamente a comédia do texto. Os outros textos têm como referência o mar e no final do espectáculo os actores apresentam a sua Vitória. A vitória sobre o vício de fumador, sobre a qual se fala entusiasticamente enquanto se fuma um cigarro. Essa é mais uma metáfora dos tempos que correm, uma vez que as personagens da vida ostentam discursivamente as suas pequenas vitórias enquanto a sua prática as esmaga, mostrando exactamente o contrário.
O espectáculo antecipa o final com um falso final, no qual Guilherme Noronha sai da sombra e percorre os quadros nos quais ele era o amigo com o qual nunca se podia contar. Um pouco precipitado e extemporâneo, este final quebrou o ritmo que o espectáculo teve naturalmente, suportado pela cumplicidade desses dois grandes actores que são Filipe Crawford e Rui Paulo, pela música de Quim Tó, pelas ilustrações de Filipe Abranches, pelo desenho de luz de Nuno Gomes e pela assistência de encenação de Guilherme Noronha. Mas, independentemente das opções mais sombrias, o que estes actores ofereceram ao público de Faro foram as delícias de um humor inteligente servido no talento de dois actores.

Thursday, November 1, 2007

O poder da flor


O serviço educativo do Palácio da Galeria de Tavira propôs ao grupo teatro Al-MaSRAH a concepção de um espectáculo que reflectisse a preocupação que deve nascer nos algarvios sobre o perigo da extinção da Tuberaria Major. Essa flor, originária do Algarve, é única no mundo. Desabrocha com os primeiros raios de sol e dura entre seis a oito horas. Espécie que atinge aproximadamente 40 cm, com toiça lenhosa, ramificada. As folhas são contraídas em pecíolo, porém as nervuras não são anastemosadas. As brácteas são largamente ovadas, obtusas. As flores, amarelas com máculas escuras na base, têm de 30 a 50 mm de diâmetro. É um endemismo lusitânico, que ocorre pontualmente no sotavento algarvio, nas clareiras de matos xerofílicos, em pinhais abertos.
Os actores Pedro Ramos, Susana Nunes, Nuno Faísca e Rita Alves brindaram o público que acorreu ao Palácio da Galeria, em Tavira, com um espectáculo diferente. Orgânico, assente na emoção, os quatro actores convidaram o público a fazer um percurso pelas salas do Palácio da Galeria, mostrando exposição de Roberto Santandreu que prende numa imagem eterna a efemeridade da pequena flor.
Há um percurso de emoções, começando com a euforia e a vivacidade típica da infância. Os actores assumem uma postura de criança traquina que nos convida para partilhar das suas brincadeiras. Vestidos com tons de amarelo, como as pétalas da flor, os actores convidam-nos a brincar com o desabrochar da flor. O público segue os actores e vai ter a uma sala onde se ouve o poema de Almada Negreiros sobre a flor desenhada por uma criança. As brincadeiras e a inocência das crianças estão patentes nas acções dos actores. E nós acreditamos que é mesmo com aquelas linhas, com aquelas brincadeiras, que Deus desenhou uma flor.
Na passagem para a sala seguinte seguimos os actores, que nos mostram uma actriz debaixo de um lençol. Como num casulo, a actriz vai-se desocultando, mostrando-se sensual e bela, como a Tuberaria aos primeiros raios da manhã. A sala seguinte mostra-nos o desabrochar da juventude com os quatro actores a ocuparem o espaço de uma maneira aparentemente caótica, de quem quer viver ao máximo o pouco tempo que lhe resta. Os actores correm, saltam, escondem-se debaixo dos bancos, atrás do público, como se estivessem em permanente delírio. O delírio segue para outra sala, onde vemos o simbolismo da flor em todo o seu esplendor. Uma faixa de cetim amarelo que se ergue do chão até ao tecto e que mostra ao espectador a exuberância da flor. E voltamos à sala onde a actriz-flor se nos revela em toda a sua sensualidade e beleza. O auge da floração. Essa exuberância passa para outra sala, onde se pode ler “Tudo é efémero”. Aí assiste-se ao desregramento total, contaminado pelo frémito dionisíaco. O público dispõe-se à volta de uma mesa, repleta de copos, nos quais os actores servem champanhe e convidam o público a partilhar da euforia. A música tem uma forte batida e as luzes são psicadélicas. O strauber fragmenta as imagens dos corpos em delírio e o público partilha a dança com os actores. A dança termina e o público regressa à sala onde a actriz desabrochou de dentro do lençol. Vemo-la a voltar para o casulo, mostrando o fim de um ciclo que se anunciou breve. Efémero. Será? De regresso à sala onde se entra em contacto com a palavra, ouvimos a voz dizer que a flor só é bela porque é efémera, como a estação do ano, anunciando um novo ciclo. Os actores convidam então o público a segui-los, presenciando a sua dificuldade de locomoção. No final despedem-se oferecendo ao público o programa do espectáculo amarelo, dobrado fazendo lembrar uma flor, e sementes, para não deixar morrer o sonho.
As sementes são o potencial que se pode actualizar, se o Homem quiser. O público saiu com dezenas de Tuberaria Major em potência no bolso. Resta agora à sua consciência e à sua vontade a capacidade para transformar a potência em acto, modificando as consciências de forma a evitar a sua extinção.
Um espectáculo que contém, também ele, a essência da flor, porque é efémero. E, tal como a flor, tal como as paixões, só é belo porque é efémero. E, paradoxalmente, é isso que o torna eterno.

Stabat Mater - Uma dolorosa beleza




Stabat Mater ("Estava a mãe") corresponde às duas primeiras palavras do hino Mariano, a partir de um poema medieval, que descreve a angústia da Virgem Maria durante a crucificação. Um hino litúrgico que celebra as dores da Mãe de Cristo no calvário quando este sofria o processo de morte.
Este acto de contemplação do sofrimento de Maria inspirou António Tarantino, artista e escritor italiano, escreveu uma Stabat Mater, encenada por Jorge Silva Melo. A relação do hino mariano com a contemporaneidade assenta na contemplação do sofrimento e das mortes alheias, seja nas ruas seja nos pardieiros, seja nas prisões. Esta Mãe Dolorosa é a história de Maria, ex-prostituta, vivendo de expedientes, mãe solteira, plena de uma raiva explosiva contra a sociedade, à procura do filho desaparecido. O texto é um longo monólogo, onde a partir da linguagem de rua dos bairros sociais, destaca-se a hipocrisia, as linhas cruzadas da vida, as entranhas de uma dor que não salva, e da história que apenas se mostra circular, sem evoluir para uma espiral que aprende a contornar os erros do passado. STABAT MATER é a primeira peça de uma tetralogia de António Tarantino, do qual fazem também parte Paixão Segundo João, Vésperas da Virgem Santíssima e Brilharetes, que lhe valeu o mais alto e prestigioso reconhecimento dramatúrgico para a escrita teatral italiana - Prémio Riccione. Foi revelado em Portugal em 2004 com a leitura encenada de A Casa de Ramallah e, em 2005, com a estreia de Paixão Segundo João. Neste texto descobrimos vários cruzamentos, tanto da esfera privada como do plano da política nacional e internacional. Para além de ser uma crítica à hipocrisia social que fecha os olhos à prostituição e envia para o convento meninas abusadas pelos pais, põe o dedo na ferida das instituições que consideram uma bênção para os pobres e os despojados as pensões de sobrevivência e o apoio que um estado de direito tem obrigação de dar aos que mais precisam. Aponta o dedo, com a crueldade imposta, aos serviços sociais que olham com desprezo os indivíduos que apoiam. É muito significativa a imagem do ambientador que se espalha no ar após a visita de um desses enteados da vida. Para que não permaneça a memória da miséria nas consciências confortáveis dos serviços sociais.
Maria sobreviveu sozinha sacrificando-se por um filho que tinha o pior dos males para um pobre: a inteligência. Porque quem é inteligente aspira a uma vida melhor, tanto para si, como para os outros. Quem é inteligente não olha se resigna com a miséria moral que descobre em seu redor. Quem é inteligente torna-se politicamente activo, mesmo que esse acto lhe possa trazer a prisão e a morte. Maria, sem saber, contribuiu para a crucificação do seu filho, porque lhe deu uma educação que lhe permitiu esclarecer-se e pensar que podia lutar por um mundo melhor. Deu-lhe a ideia de liberdade, pela qual se deixou “crucificar” para salvar a humanidade.
Maria sentia-se limpa. Mais limpa do que a mulher do homem que se servia dela e a engravidou. Mais limpa que toda a fauna que vagueava pelas ruas, ao seu redor. Sentia-se limpa porque tudo aquilo que fez, fê-lo com um propósito nobre: criar o seu filho e afastá-lo, tanto quanto possível dos caminhos mais perigosos e vulneráveis, como a homossexualidade, a prostituição, a pederastia, o roubo, a marginalidade. Não foi capaz de o afastar da poesia nem da capacidade de sonhar, perigos bem reais que poder levar um ser humano à perdição.
A encenação de Jorge Silva Melo assentou na figura da actriz. Através da sua encenação Maria João Luís soube transmitir alguma dignidade dentro da miséria moral inquietante em que a sua personagem esbraceja. A sua interpretação foi dolorosamente bela, como a composição do poema mariano. A cenografia, depurada, limita-se a quatro bancos corridos com genuflexório, uns caixotes com roupa e um painel rectangular de cor vermelha que domina a cena. O vermelho, arquétipo do sangue, do sofrimento, do erotismo, encontra reflexo no discurso de Maria: despudorado, repetitivo, mas apaixonado e expressivo. O palavrão faz parte do seu ser rude, assim como a capacidade de implorar pela salvação do seu filho faz parte do seu ser abnegado. O banco da igreja metamorfoseia-se num banco de rua ou num banco de tribunal. O banco corrido, colectivo, institucional, onde Maria passa horas à espera: das preces, dos subsídios, da justiça, do pai do seu filho. A dolorosa mãe, no banco do calvário da justiça, chorando antecipadamente as lágrimas pelo seu filho desaparecido. António Tarantino também nos convida a fazer uma reflexão acerca do flagelo do aborto clandestino, que Maria se recusou a fazer. Recusando-se a dar-lhe a paternidade ao filho, o homem que a engravidou olha com condescendência e uma ligeireza perturbadora a intervenção feita com agulhas de croché, a custos divididos, que o libertaria de qualquer responsabilidade.
Maria João Luís vai passando todos esses contrastes, todas aquelas confusões de sentimentos através do poder da sua interpretação. Com um poder de transfiguração em palco notável, a actriz faz com que qualquer espectador se apiede da sua história, no sentido do estar-com, num sentido do ser-com-o-outro verdadeiramente heideggeriano. E esse sentido existe porque nos revemos na sua história extremamente humana de despojamento e entrega. Como Jorge Silva Melo disse em declarações à imprensa nacional: "Não havia outra actriz em Portugal para fazer isto. É um texto brutal, obsceno, sobre uma mulher que insulta o Mundo inteiro, mas que, afinal, traduz uma enorme procura de amor. É uma forma de dizer 'eu existo, olhem para mim’ é uma peça para ver com compaixão". E nós acrescentamos, através do poema que inspirou esta obra: “Faz, ó Mãe, fonte de amor! / Que eu sinta o espinho da dor, / Para contigo chorar.

Sunday, October 14, 2007

Criadores com direito a programadores


Nos dias que correm, em que os limites e as fronteiras entre as artes se esbatem, perguntamos amiúde: será que ainda haverá alguma coisa de original para apresentar? Será que ainda haverá coisas por explorar dentro das Artes Performativas? E por mais que o nosso pessimismo nos impele a dizer que não, a capacidade criativa do ser humano não pára de nos surpreender. Essa capacidade criativa está bem patente nos trabalhos que têm vindo a ser criados ao nível da dança contemporânea, na qual os criadores se servem de múltiplos suportes para expressar novas linguagem ao nível do corpo e da relação com o eu, o outro, o mundo, os objectos do quotidiano.
A Associação cultural DeVIR, como único representante nacional da IDEE e membro associado desta rede europeia, trouxe ao teatro das Figuras, perante uma galeria de programadores internacionais durante dois dias, nove trabalhos de criadores portugueses, representativos de uma geração de coreógrafos emergentes.
O programa foi diversificado e rico, dando conta do leque imenso que abrange a criação em Portugal. A Plataforma teve início com um trabalho de Sara Vaz, bailarina formada pelo Conservatório Nacional de Lisboa. Este criadora concebeu o seu primeiro solo, Odete, Odile, em 2006. Esta criação parte do bailado O Lago dos Cisnes como pretexto para a transgressão de um universo clássico, redescobrindo o outro lado do sentido maniqueísta do cisne branco e do cisne preto. Sara Vaz começa o espectáculo com a assunção do trabalho dos pés, elevados a categoria estética e destacados num écran, à medida que estão a ser filmados em tempo real. Os pés, como base de sustentação do corpo, afirmam-se como paradigma do movimento nas inúmeras colocações que se modificam à medida que o corpo adopta novas posturas.
Dos pés Sara Vaz passa para a assunção dos dedos e brinca. Regressando ao imaginário das crianças, reconstrói uma história coreografada nas pontas dos dedos. Com muito humor a sentido crítico, os dedos, mostrados em écran gigante, dançam ao som dos compassos imortalizados de Tchaikovski os passos que nos habituámos a ver no Lago dos Cisnes. O corpo é finalmente libertado e a bailarina revisita os passos básicos da dança clássica, enriquecendo-os com o peso do corpo, brincando com o eixo gravitacional que, ao invés de se elevar, a puxa em direcção ao solo. A bóia pode ser uma solução recorrente na caracterização do Lago dos Cisnes mas funciona como elemento de transgressão que prepara o lado lunar do cisne.
Sara Vaz começa por explorar o universo do cisne branco, repleto de sonhos, que se elevam como num balão de hélio, mas também de dúvidas, patentes no corpo que se transforma. Um corpo que cai, que se magoa, que se prostra exausto para dele renascer o outro lado do cisne: o lado obscuro de Odile. Obscuro porque ainda é projecto de procura. Uma procura que também se eleva em hélio mas que arrisca mais na mistura que ao mesmo tempo suja a clareza do corpo e da música, mas purifica numa catarse somática.
Um universo feminino intensamente explorado, no qual a transgressão rompe o percurso clássico, abrindo um percurso autêntico de procura e descoberta assinalável.
A segunda proposta, Ícones, de Victor Hugo Pontes, assenta no conceito de imagem parada, como se de fotogramas se tratasse. A coreografia, interpretada por Joana Antunes, Ricardo Machado e Flávio Rodrigues, foi concebida tendo por base a história que se pode criar a partir da imagem visível na fotografia. Mordaz, crítica e satírica, esta proposta de Victor Hugo Pontes brinca com a ideia dos papéis assumidos socialmente e dos múltiplos papéis que as personagens sociais podem jogar. Um jogo de apropriação e troca de papéis, onde o ornamento visível deixa de ter o papel principal. Quando a personagem se despe da sua máscara social pode assumir qualquer função, pois o estatuto que lhe está inerente desapareceu. A nudez aparece neste trabalho como a depuração da categoria social, elevando a personagem a si mesma. Faltou a queda dos saltos altos da personagem feminina para que a empatia entre as três personagem funcionasse a cem por cento, pois se a depuração nos homens foi total, qual a razão da manutenção do adereço por excelência na personagem feminina? O ícone manteve-se e não deu origem a uma transfiguração total, o que foi pena.
Última chamada foi a proposta de Rafael Alvarez, que construiu um trabalho assente num imaginário masculino onde os objectos pessoais assumem o papel principal. É à volta da ideia de viagem e de percurso que toda a coreografia gira. A mudança de objectos pessoais consoante o percurso, o assumir de pequenos gestos como o beber água ou a leitura de um mapa constituem a construção de um imaginário de ser selvagem que se reconcilia consigo próprio quando está sozinho com o universo. Steinbeck está presente neste imaginário, assim como Kerouack. A fecundação da terra, a assunção da liberdade no imaginário da viagem constituem o todo interessante deste trabalho. Ter tudo no bolso e poder ser tudo o que se quiser é o passaporte para a viagem que nos abre o sonho.
A quarta proposta de dia 7 de Outubro, pré Ego Skin, foi concebida por Amélia Bentes e interpretada pela própria coreógrafa e por Ludger Lamers. Este trabalho pretende aprofundar o conceito de Ego, enquanto auto-imagem, aprofundando o sentido de corpo-pele. A concepção do vídeo de Catarina Barata está francamente bem conseguida, uma vez que nos mostra as múltiplas possibilidades de mistura e intrusão entre Um e o Outro. Complementar ao vídeo a coreografia mostra uma tentativa de moldagem da pele de Um ao Outro, sobressaindo para além de ideia de complementaridade, a ideia de equilíbrio. Nesta coreografia é nítida a noção de intersubjectividade, na medida em que Um só existe realmente se tiver no Outro a construção da sua própria imagem. Eu só existo enquanto construção gnoseológica e sensitiva do Outro, senão esvaio-me no vazio do meu próprio sentido.
O tempo de composição das figuras e a assunção do aconchego é o bastante, permitindo ao espectador a sua própria construção do equilíbrio interior. Ao som da música de Goodspeed You Black Emperor a construção conceptual tomou forma e mostrou composições de corpos em descoberta e em equilíbrio. Numa palavra, pode descrever-se este trabalho como notável.
No dia 8 de Outubro as cinco propostas dos criadores portugueses para a Plataforma de Dança tiveram lugar no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa). O embate inicial foi com a proposta de Luis Guerra, Ser Humano. Com música de Rogério C. Pires e Tiago Cerqueira este trabalho propõem-se tratar o corpo como elemento poroso e permeável a todo o tipo de influências. Com uma performance admirável, Luís Guerra mostra o corpo afectado pelo sonho, pelo pesadelo, pela esperança e pelo desespero. A imagem de Luís Guerra é contrastada pela imagem de uma criança omnipresente e luminosa num suporte vídeo. Do sublime e do horrível parece ser o mote que suportou este trabalho, e que conseguiu tocar o espectador.
As propostas de João Costa, Carolina Ramos e Tânia Carvalho não trouxeram nenhuma mais valia ao universo dos criadores portugueses, uma vez que os trabalhos se mantiveram muito próximos do que se tem feito ao nível da dança contemporânea nos últimos 20 anos.
O último trabalho, O Labirinto, a Morte e o Público,da responsabilidade de João Samões, propõe-se “explorar a criação de um evento de criatividade colectiva assente numa pesquisa experimental sobre a partilha do sentimento de tragédia.”
A partir da ideia de morte desenvolveu-se a relação entre o culto dos mortos, a assunção do próprio morto no velório e o ressurgimento da esperança e da vida através das dádivas da Terra. O tempo do velório é um tempo de espera que custa a passar, em contraste com a mudança cénica operada pelo público, o depositar da flor, num gesto que poderia ser visto como de despedida ao morto evidencia-se como o regresso da esperança com o florir interior. O culto dos mortos, desde tempos imemoriais que tem como função, não apenas apaziguar os espíritos prestando-lhes homenagem, mas recordar aos vivos o seu lugar e o seu papel na Terra. Este trabalho trouxe de facto algo de novo à plataforma de criadores de dança, tendo lidado com o culto dos mortos com a naturalidade com que ele é assumido pelos diferentes povos.
A plataforma de criadores portugueses mostrou um pequeno núcleo de coreógrafos que contribuíram para afirmar, uma vez mais, a imagem de Portugal nos destinos da dança contemporânea.

Monday, September 24, 2007

Terpsicore desceu a Faro






O Teatro das Figuras vestiu-se de gala para receber mais uma festa da dança. Terpsícore foi a musa que deu o nome ao espectáculo de dia 23 de Setembro, assinalando o terceiro aniversário da Companhia de Dança do Algarve.
Se na gíria do teatro se costuma dizer que “desceu o santo” quando um actor desempenhou excepcionalmente bem a sua função, neste caso podemos dizer que a musa desceu sobre os bailarinos que dançaram no Teatro das Figuras. A Companhia de Dança do Algarve convidou mais quatro Companhias de Dança para se juntarem a esta festa: a Companhia Nacional de Bailado, a Hamburg Ballett, a Royal Swedish Ballet e o Teatro-Ópera de Saratov.
Dentro da chamada “dança para a família” o público pôde assistir a um programa extenso e eclético, onde se conseguiu entrar no mesmo espírito, dançando na diferença.
Assinalou-se uma evolução considerável nos bailarinos da Companhia de Dança do Algarve que aos poucos vai perdendo a característica de escola de dança que lhe é inerente, emancipando-se, conquistando um nível semelhante ao das grandes companhias de dança da Europa. A par da frescura e da alegria mostrada pelos bailarinos da Companhia de Dança do Algarve foi estimulante assistir a números de outras companhias, cujos bailarinos já atingiram um grau de maturidade considerável. Assinalamos o Adagio do bailado Romeu e Julieta pelos bailarinos Natalia Kolosova e Danil Kurenov do Teatro-ópera de Saratov, cuja delicadeza e expressão consegue libertar o espírito e viajar para o sentido da obra emblemática de Shakespeare. Ou a prestação de Barbora Hruskova e Carlos Labiós, da Companhia Nacional de Bailado, com o Pas de Deux do bailado O Lago dos Cisnes. Ter acesso aos clássicos revisitados é sempre um ponto de partido que predispõe o espírito para a libertação da contemporaneidade. Essa libertação começou com Alexandre Fernandes, da Companhia Nacional de Bailado, que ao dançar o tema Changes in the end, de Muse, provocou desde logo uma cisão entre o clássico e o contemporânea, admitindo para a sua coreografia elementos acrobáticos e passos da “capoeira” com a marcação e a postura clássica da dança.
Numa linha mais pós-moderna tivemos a prestação da Comapnha Hamburgo Ballett, com os bailarinos Heather Jurgensen e Yaroslav Ivanenko. Uma das mais surpreendentes e sentidas prestações da noite. Ao som de Gurdjieff, a coreografia Invisible Grace, deYaroslav Ivanenko elevou-se na noite, penetrando de rompante nos espíritos desprevenidos dos espectadores.
Também do Hamburg Ballett, a coreografia Ne m’oublie pas, de Yaroslav Ivanenko dançada por Heather Jurgensen e Yaroslav Ivanenko, com música de Yann Tiersen, mostrou de forma sentida uma relação de proximidade e afastamento entre duas pessoas apaixonadas. O sentimento posto no corpo, na delicadeza do gesto, na expressão do rosto, mostravam uma coreografia de bailarinos que são também actores que representam e transmitem emoções.
Mas o ponto alto da noite foi a prestação de Marie Lindqvist e Dragos Mihalcea, da Royal Swedish Ballet, que dançaram uma coreografia de Krystof Pastor ao com das Variações de Goldber de J. S. Bach. A fusão dos corpos com a música conseguiu emocionar de uma forma que toca o sublime. Esse sentimento comum que assalta qualquer pessoa, mesmo que não seja um espectador entendido na área da dança.
O espectáculo terminou em apoteose com os bailarinos da Companhia de Dança do Algarve dançando a coreografia de Natalia Abramova Jota, com música de Minkus.
Foi uma festa bonita que ultrapassou o mero entretenimento pois apesar de ser um espectáculo constituído por fragmentos, a dança conseguiu entrar de rompante na emoção dos espectadores. Terpsícore desceu à cidade e juntou-se à festa da Companhia de Dança do Algarve.

Thursday, September 20, 2007

Hamlet Light ou o desejo de teatro

E se em vez de mostrar um texto clássico, revisitado ao longo dos séculos de mil e uma maneiras, incutíssemos no espectador o desejo de ir ao teatro? Como fazer surgir esse desejo numa sociedade na qual as pessoas em dez saídas escolhem nove delas para ir ao cinema?
Talvez tenham sido estas questões pertinentes que despoletaram a ideia deste espectáculo que foi um dos vencedores do concurso Jovens Artistas Jovens. Este concurso decorreu durante o ano de 2006, com o envolvimento de várias estruturas a nível nacional. Este projecto teve como objectivo conhecer a situação dos jovens criadores no território nacional, permitindo que os 3 trabalhos seleccionados pudessem ter o apoio das estruturas envolvidas no sentido de poderem produzir, e apresentar os respectivos espectáculos ao público.
Todo este espectáculo partiu de uma questão: “Não será preciso esquecer o teatro para gostar dele?” E é a partir desta dialéctica ontológica que se constrói o interesse deste projecto. É preciso um distanciamento, um quase esquecimento para começar a surgir em nós a necessidade, o desejo de teatro.
O projecto de Vvoitek Ziemilski, e de toda uma equipa de 14 pessoas, envolve meios áudio, vídeo e de criação multimédia que se juntam a este repto difícil de criar no espectador o desejo de teatro.
No espectáculo Vvoitek Ziemilski reclama para si o papel de narrador: por um lado vai explicando os passos que são precisos dar para se construir o filme publicitário deste espectáculo de teatro. Por outro, vai dando conta ao espectador da cena que está a ser trabalhada. Hamlet é uma peça escrita há seis séculos, que pressupõe um conhecimento da sua estrutura por parte do espectador. As cenas filmadas não são sequenciais, dando ao espectador a oportunidade de reconstruir o puzzle na sua cabeça. Os actores apresentam-se frente a uma pantalha luminosa, de cor cinzenta, completamente neutra, ao fundo do palco. Dizem como se chamam e que papéis irão desempenhar. A seguir deixam filmar os seus olhares em close-up. Na boca de cena encontra-se um écran que vai informando o espectador da montagem em tempo real do filme publicitário sobre o espectáculo. De repente, quando a acção se começa a centrar em Laertes, o espectador começa a ver a pantalha do fundo a mudar de cores e de textura. Esse é o resultado da criação em tempo real de composições que estão a ser construídas numa mesa de montagem de efeitos por Verónica Conte. Aos poucos, cena a cena, vai aparecendo no écran a cenografia adequada a cada emoção. A cenografia torna-se um elemento não de criação antecipada mas concebida no momento da representação. Na pantalha vê-se fruta a cair, fios enleados que se vão desembaraçando, linhas e números que mostram a construção de uma intriga, platas verdes, pó preto, um copo detentor de um líquido ao qual se juntou um pó estranho. Estas e muitas outras imagens vão ajudando o espectador a criar a ambiência adequada a cada fragmento da peça de Shakespeare. E como é de fragmentos que se trata, a composição estética é fundamental para a reconstrução do todo emocional. Ofélia chega junto de Hamlet para lhe devolver as cartas que este lhe havia escrito. Cartas nas quais lhe prometia amor eterno. Ofélia devolve-lhe um punhado de varas de madeira que caem no chão ruidosamente. Que melhor adereço serviria para mostrar o coração partido de uma rapariga apaixonada e o desinteresse frio e duro de um homem que tem o cérebro atribulado por uma miríade de problemas? As varas de madeiras são o símbolo perfeito para mostrarem a junção de um amor ferido e o desejo de vingança. O contorno de Ofélia é marcado no chão, com a marca do morto. A imagem do contorno fica, sem o corpo, mostrando que a nossa memória é curta e que nos esquecemos depressa dos nossos mortos.
As cenas do quarto da rainha, da relação ainda erótica entre Ofélia e Hamlet, são de uma beleza inquietante, fazendo exaltar a sensualidade de uma forma limpa e perturbante.
Todos os fragmentos foram criados com cuidado e encontram-se plenos de símbolos. A música, a cenografia, os adereços, os ângulos com que são filmados contribuem para que cada cena de per si se torne completa.
No final o resultado é surpreendente. Depois de uma pausa de dez minutos o público pôde assistir a dois filmes publicitários, realizados e montados à sua frente: um de cariz mais clássico e outro que rompe os cânones mais convencionais. Depois de ter assistido a todo o processo de criação o público é brindado com dois trailers que podem suscitar no espectador menos atento o desejo de teatro. E se em cada dez saídas, aumentar o número de uma para duas saídas com o objectivo de ir ao teatro, só por isso valeu a pena.

Monday, September 3, 2007

Dançando com a luz


A abrir Setembro, o Teatro das Figuras recebeu o Quórum Ballet. Este grupo veio apresentar o espectáculo Relações. Um mesmo conceito para duas visões coreográficas distintas.

O espectáculo Relações desenrolou-se partir do conceito que lhe dá o nome. A partir desse conceito dois coreógrafos desenharam duas coreografias distintas mas igualmente notáveis. A visão inicial marca seis corpos junto ao solo, afastados uns dos outros, dando a sensação de nudez. Eram accionados pela luz e pela música. Primeiro, como se de um nascimento se tratasse, há um sentimento de dor no agir. Depois o agir começa a ser mais fluido e passa a ser possível a interacção. Primeiro a pares, depois em grupos. Os corpos reconhecem-se e interagem de forma natural, como se todos os elementos pertencessem ao mesmo corpo. A queda das roupas e subsequente veste por parte dos bailarinos marca de alguma forma o fim da inocência e o início da formação de barreiras entre os indivíduos. Os outros fogem e há um ser que fica sozinho. Primeiro dança mas depois tem de lutar com bolas gigantes: escudos invisíveis das mascares sociais. E essas armas sociais prolongam-se para além do primeiro bailarino. Por detrás do pano, para onde os outros conseguiram fugir, os escudos sociais não deixam de actuar. Primeiro a bailarina usa-as confortavelmente mas depois as bolas gigantes viram-se contra ela, obrigando-a a movimentos esquivos, como quem se furta a uma agressão. Quando o pano é levantado os bailarinos arremessam as bolas para o público, libertando-se do peso desses grilhões que os impediam de voltar à pureza inicial.
Esta primeira coreografia de Iolanda Rodrigues foi interpretada de forma magistral por Daniel Cardoso, Elson Ferreira, Felipi Narciso, Mónica Gomes e Theresa Da Silva C. Envolvente e bela, o espectáculo não deixou os espectadores indiferentes. Para isso também contribuiu o suporte musical constituído por Aaron Funk, Susumo Yokota e Yann Tiersen. Mas o desenho de luz concebido por Carlos Arroja, que construiu com a sua iluminação um sétimo ser dançante, foi deveras surpreendente, dando ainda mais dinamismo ao espectáculo.
A segunda coreografia, concebida por Daniel Cardoso, teve também um impacto visual muito forte. A luz, de Carlos Arroja, rasgava as cortinas que delimitavam o espaço da dança. Seguindo-se à luz, os corpos dos bailarinos invadiram a cena pelas frestas de luz. A cena agora sentiu-se invadida por cor e por tintas que os bailarinos iam impregnando nas cortinas. Cada um tinha o seu ritmo, que se consubstanciava numa forma específica na tinta que ia depositando no cenário, munidos de pincéis. Círculos, traços, pontos riscos, iam aos poucos construindo uma pintura que se poderia aproximar da primeira fase do abstraccionismo de Kandinski. A cor da tela passa para o branco imaculado e puro dos figurinos dos bailarinos, concebido por Manuela Tinoco. Também nesta visão de Daniel Cardoso a tábua rasa do nascimento vai enriquecendo de sensações e dando lugar a um corpo mestiço de cor, que se mistura com outros corpos, desce à plateia, dança entre o público e regressa ao lugar de origem.
Neste trabalho as luzes também jogam um jogo intenso de relações com os actores. Aproximam-se, afastam-se, acendem, apagam, tornam-se autónomas e não simplesmente suportes artísticos. Os corpos dos bailarinos expressam-se com intensidade ao som das músicas de Kronos Quartet, Balanesco Quartet e Kodo. Todo o corpo era um manancial de energia, desde os dedos dos pés até às expressões faciais e à língua. Esta coreografia, dançada por Elson Ferreira, Felipi Narciso, Mónica Gomes e Theresa Da Silva C. reforçou o nível superior de técnica de que estes bailarinos são portadores. Um trabalho completo em que ao corpo se alia a luz, dançando as emoções das relações humanas.