Nos dias que correm, em que os limites e as fronteiras entre as artes se esbatem, perguntamos amiúde: será que ainda haverá alguma coisa de original para apresentar? Será que ainda haverá coisas por explorar dentro das Artes Performativas? E por mais que o nosso pessimismo nos impele a dizer que não, a capacidade criativa do ser humano não pára de nos surpreender. Essa capacidade criativa está bem patente nos trabalhos que têm vindo a ser criados ao nível da dança contemporânea, na qual os criadores se servem de múltiplos suportes para expressar novas linguagem ao nível do corpo e da relação com o eu, o outro, o mundo, os objectos do quotidiano.
A Associação cultural DeVIR, como único representante nacional da IDEE e membro associado desta rede europeia, trouxe ao teatro das Figuras, perante uma galeria de programadores internacionais durante dois dias, nove trabalhos de criadores portugueses, representativos de uma geração de coreógrafos emergentes.
O programa foi diversificado e rico, dando conta do leque imenso que abrange a criação em Portugal. A Plataforma teve início com um trabalho de Sara Vaz, bailarina formada pelo Conservatório Nacional de Lisboa. Este criadora concebeu o seu primeiro solo, Odete, Odile, em 2006. Esta criação parte do bailado O Lago dos Cisnes como pretexto para a transgressão de um universo clássico, redescobrindo o outro lado do sentido maniqueísta do cisne branco e do cisne preto. Sara Vaz começa o espectáculo com a assunção do trabalho dos pés, elevados a categoria estética e destacados num écran, à medida que estão a ser filmados em tempo real. Os pés, como base de sustentação do corpo, afirmam-se como paradigma do movimento nas inúmeras colocações que se modificam à medida que o corpo adopta novas posturas.
Dos pés Sara Vaz passa para a assunção dos dedos e brinca. Regressando ao imaginário das crianças, reconstrói uma história coreografada nas pontas dos dedos. Com muito humor a sentido crítico, os dedos, mostrados em écran gigante, dançam ao som dos compassos imortalizados de Tchaikovski os passos que nos habituámos a ver no Lago dos Cisnes. O corpo é finalmente libertado e a bailarina revisita os passos básicos da dança clássica, enriquecendo-os com o peso do corpo, brincando com o eixo gravitacional que, ao invés de se elevar, a puxa em direcção ao solo. A bóia pode ser uma solução recorrente na caracterização do Lago dos Cisnes mas funciona como elemento de transgressão que prepara o lado lunar do cisne.
Sara Vaz começa por explorar o universo do cisne branco, repleto de sonhos, que se elevam como num balão de hélio, mas também de dúvidas, patentes no corpo que se transforma. Um corpo que cai, que se magoa, que se prostra exausto para dele renascer o outro lado do cisne: o lado obscuro de Odile. Obscuro porque ainda é projecto de procura. Uma procura que também se eleva em hélio mas que arrisca mais na mistura que ao mesmo tempo suja a clareza do corpo e da música, mas purifica numa catarse somática.
Um universo feminino intensamente explorado, no qual a transgressão rompe o percurso clássico, abrindo um percurso autêntico de procura e descoberta assinalável.
A segunda proposta, Ícones, de Victor Hugo Pontes, assenta no conceito de imagem parada, como se de fotogramas se tratasse. A coreografia, interpretada por Joana Antunes, Ricardo Machado e Flávio Rodrigues, foi concebida tendo por base a história que se pode criar a partir da imagem visível na fotografia. Mordaz, crítica e satírica, esta proposta de Victor Hugo Pontes brinca com a ideia dos papéis assumidos socialmente e dos múltiplos papéis que as personagens sociais podem jogar. Um jogo de apropriação e troca de papéis, onde o ornamento visível deixa de ter o papel principal. Quando a personagem se despe da sua máscara social pode assumir qualquer função, pois o estatuto que lhe está inerente desapareceu. A nudez aparece neste trabalho como a depuração da categoria social, elevando a personagem a si mesma. Faltou a queda dos saltos altos da personagem feminina para que a empatia entre as três personagem funcionasse a cem por cento, pois se a depuração nos homens foi total, qual a razão da manutenção do adereço por excelência na personagem feminina? O ícone manteve-se e não deu origem a uma transfiguração total, o que foi pena.
Última chamada foi a proposta de Rafael Alvarez, que construiu um trabalho assente num imaginário masculino onde os objectos pessoais assumem o papel principal. É à volta da ideia de viagem e de percurso que toda a coreografia gira. A mudança de objectos pessoais consoante o percurso, o assumir de pequenos gestos como o beber água ou a leitura de um mapa constituem a construção de um imaginário de ser selvagem que se reconcilia consigo próprio quando está sozinho com o universo. Steinbeck está presente neste imaginário, assim como Kerouack. A fecundação da terra, a assunção da liberdade no imaginário da viagem constituem o todo interessante deste trabalho. Ter tudo no bolso e poder ser tudo o que se quiser é o passaporte para a viagem que nos abre o sonho.
A quarta proposta de dia 7 de Outubro, pré Ego Skin, foi concebida por Amélia Bentes e interpretada pela própria coreógrafa e por Ludger Lamers. Este trabalho pretende aprofundar o conceito de Ego, enquanto auto-imagem, aprofundando o sentido de corpo-pele. A concepção do vídeo de Catarina Barata está francamente bem conseguida, uma vez que nos mostra as múltiplas possibilidades de mistura e intrusão entre Um e o Outro. Complementar ao vídeo a coreografia mostra uma tentativa de moldagem da pele de Um ao Outro, sobressaindo para além de ideia de complementaridade, a ideia de equilíbrio. Nesta coreografia é nítida a noção de intersubjectividade, na medida em que Um só existe realmente se tiver no Outro a construção da sua própria imagem. Eu só existo enquanto construção gnoseológica e sensitiva do Outro, senão esvaio-me no vazio do meu próprio sentido.
O tempo de composição das figuras e a assunção do aconchego é o bastante, permitindo ao espectador a sua própria construção do equilíbrio interior. Ao som da música de Goodspeed You Black Emperor a construção conceptual tomou forma e mostrou composições de corpos em descoberta e em equilíbrio. Numa palavra, pode descrever-se este trabalho como notável.
No dia 8 de Outubro as cinco propostas dos criadores portugueses para a Plataforma de Dança tiveram lugar no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa). O embate inicial foi com a proposta de Luis Guerra, Ser Humano. Com música de Rogério C. Pires e Tiago Cerqueira este trabalho propõem-se tratar o corpo como elemento poroso e permeável a todo o tipo de influências. Com uma performance admirável, Luís Guerra mostra o corpo afectado pelo sonho, pelo pesadelo, pela esperança e pelo desespero. A imagem de Luís Guerra é contrastada pela imagem de uma criança omnipresente e luminosa num suporte vídeo. Do sublime e do horrível parece ser o mote que suportou este trabalho, e que conseguiu tocar o espectador.
As propostas de João Costa, Carolina Ramos e Tânia Carvalho não trouxeram nenhuma mais valia ao universo dos criadores portugueses, uma vez que os trabalhos se mantiveram muito próximos do que se tem feito ao nível da dança contemporânea nos últimos 20 anos.
O último trabalho, O Labirinto, a Morte e o Público,da responsabilidade de João Samões, propõe-se “explorar a criação de um evento de criatividade colectiva assente numa pesquisa experimental sobre a partilha do sentimento de tragédia.”
A partir da ideia de morte desenvolveu-se a relação entre o culto dos mortos, a assunção do próprio morto no velório e o ressurgimento da esperança e da vida através das dádivas da Terra. O tempo do velório é um tempo de espera que custa a passar, em contraste com a mudança cénica operada pelo público, o depositar da flor, num gesto que poderia ser visto como de despedida ao morto evidencia-se como o regresso da esperança com o florir interior. O culto dos mortos, desde tempos imemoriais que tem como função, não apenas apaziguar os espíritos prestando-lhes homenagem, mas recordar aos vivos o seu lugar e o seu papel na Terra. Este trabalho trouxe de facto algo de novo à plataforma de criadores de dança, tendo lidado com o culto dos mortos com a naturalidade com que ele é assumido pelos diferentes povos.
A plataforma de criadores portugueses mostrou um pequeno núcleo de coreógrafos que contribuíram para afirmar, uma vez mais, a imagem de Portugal nos destinos da dança contemporânea.
A Associação cultural DeVIR, como único representante nacional da IDEE e membro associado desta rede europeia, trouxe ao teatro das Figuras, perante uma galeria de programadores internacionais durante dois dias, nove trabalhos de criadores portugueses, representativos de uma geração de coreógrafos emergentes.
O programa foi diversificado e rico, dando conta do leque imenso que abrange a criação em Portugal. A Plataforma teve início com um trabalho de Sara Vaz, bailarina formada pelo Conservatório Nacional de Lisboa. Este criadora concebeu o seu primeiro solo, Odete, Odile, em 2006. Esta criação parte do bailado O Lago dos Cisnes como pretexto para a transgressão de um universo clássico, redescobrindo o outro lado do sentido maniqueísta do cisne branco e do cisne preto. Sara Vaz começa o espectáculo com a assunção do trabalho dos pés, elevados a categoria estética e destacados num écran, à medida que estão a ser filmados em tempo real. Os pés, como base de sustentação do corpo, afirmam-se como paradigma do movimento nas inúmeras colocações que se modificam à medida que o corpo adopta novas posturas.
Dos pés Sara Vaz passa para a assunção dos dedos e brinca. Regressando ao imaginário das crianças, reconstrói uma história coreografada nas pontas dos dedos. Com muito humor a sentido crítico, os dedos, mostrados em écran gigante, dançam ao som dos compassos imortalizados de Tchaikovski os passos que nos habituámos a ver no Lago dos Cisnes. O corpo é finalmente libertado e a bailarina revisita os passos básicos da dança clássica, enriquecendo-os com o peso do corpo, brincando com o eixo gravitacional que, ao invés de se elevar, a puxa em direcção ao solo. A bóia pode ser uma solução recorrente na caracterização do Lago dos Cisnes mas funciona como elemento de transgressão que prepara o lado lunar do cisne.
Sara Vaz começa por explorar o universo do cisne branco, repleto de sonhos, que se elevam como num balão de hélio, mas também de dúvidas, patentes no corpo que se transforma. Um corpo que cai, que se magoa, que se prostra exausto para dele renascer o outro lado do cisne: o lado obscuro de Odile. Obscuro porque ainda é projecto de procura. Uma procura que também se eleva em hélio mas que arrisca mais na mistura que ao mesmo tempo suja a clareza do corpo e da música, mas purifica numa catarse somática.
Um universo feminino intensamente explorado, no qual a transgressão rompe o percurso clássico, abrindo um percurso autêntico de procura e descoberta assinalável.
A segunda proposta, Ícones, de Victor Hugo Pontes, assenta no conceito de imagem parada, como se de fotogramas se tratasse. A coreografia, interpretada por Joana Antunes, Ricardo Machado e Flávio Rodrigues, foi concebida tendo por base a história que se pode criar a partir da imagem visível na fotografia. Mordaz, crítica e satírica, esta proposta de Victor Hugo Pontes brinca com a ideia dos papéis assumidos socialmente e dos múltiplos papéis que as personagens sociais podem jogar. Um jogo de apropriação e troca de papéis, onde o ornamento visível deixa de ter o papel principal. Quando a personagem se despe da sua máscara social pode assumir qualquer função, pois o estatuto que lhe está inerente desapareceu. A nudez aparece neste trabalho como a depuração da categoria social, elevando a personagem a si mesma. Faltou a queda dos saltos altos da personagem feminina para que a empatia entre as três personagem funcionasse a cem por cento, pois se a depuração nos homens foi total, qual a razão da manutenção do adereço por excelência na personagem feminina? O ícone manteve-se e não deu origem a uma transfiguração total, o que foi pena.
Última chamada foi a proposta de Rafael Alvarez, que construiu um trabalho assente num imaginário masculino onde os objectos pessoais assumem o papel principal. É à volta da ideia de viagem e de percurso que toda a coreografia gira. A mudança de objectos pessoais consoante o percurso, o assumir de pequenos gestos como o beber água ou a leitura de um mapa constituem a construção de um imaginário de ser selvagem que se reconcilia consigo próprio quando está sozinho com o universo. Steinbeck está presente neste imaginário, assim como Kerouack. A fecundação da terra, a assunção da liberdade no imaginário da viagem constituem o todo interessante deste trabalho. Ter tudo no bolso e poder ser tudo o que se quiser é o passaporte para a viagem que nos abre o sonho.
A quarta proposta de dia 7 de Outubro, pré Ego Skin, foi concebida por Amélia Bentes e interpretada pela própria coreógrafa e por Ludger Lamers. Este trabalho pretende aprofundar o conceito de Ego, enquanto auto-imagem, aprofundando o sentido de corpo-pele. A concepção do vídeo de Catarina Barata está francamente bem conseguida, uma vez que nos mostra as múltiplas possibilidades de mistura e intrusão entre Um e o Outro. Complementar ao vídeo a coreografia mostra uma tentativa de moldagem da pele de Um ao Outro, sobressaindo para além de ideia de complementaridade, a ideia de equilíbrio. Nesta coreografia é nítida a noção de intersubjectividade, na medida em que Um só existe realmente se tiver no Outro a construção da sua própria imagem. Eu só existo enquanto construção gnoseológica e sensitiva do Outro, senão esvaio-me no vazio do meu próprio sentido.
O tempo de composição das figuras e a assunção do aconchego é o bastante, permitindo ao espectador a sua própria construção do equilíbrio interior. Ao som da música de Goodspeed You Black Emperor a construção conceptual tomou forma e mostrou composições de corpos em descoberta e em equilíbrio. Numa palavra, pode descrever-se este trabalho como notável.
No dia 8 de Outubro as cinco propostas dos criadores portugueses para a Plataforma de Dança tiveram lugar no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa). O embate inicial foi com a proposta de Luis Guerra, Ser Humano. Com música de Rogério C. Pires e Tiago Cerqueira este trabalho propõem-se tratar o corpo como elemento poroso e permeável a todo o tipo de influências. Com uma performance admirável, Luís Guerra mostra o corpo afectado pelo sonho, pelo pesadelo, pela esperança e pelo desespero. A imagem de Luís Guerra é contrastada pela imagem de uma criança omnipresente e luminosa num suporte vídeo. Do sublime e do horrível parece ser o mote que suportou este trabalho, e que conseguiu tocar o espectador.
As propostas de João Costa, Carolina Ramos e Tânia Carvalho não trouxeram nenhuma mais valia ao universo dos criadores portugueses, uma vez que os trabalhos se mantiveram muito próximos do que se tem feito ao nível da dança contemporânea nos últimos 20 anos.
O último trabalho, O Labirinto, a Morte e o Público,da responsabilidade de João Samões, propõe-se “explorar a criação de um evento de criatividade colectiva assente numa pesquisa experimental sobre a partilha do sentimento de tragédia.”
A partir da ideia de morte desenvolveu-se a relação entre o culto dos mortos, a assunção do próprio morto no velório e o ressurgimento da esperança e da vida através das dádivas da Terra. O tempo do velório é um tempo de espera que custa a passar, em contraste com a mudança cénica operada pelo público, o depositar da flor, num gesto que poderia ser visto como de despedida ao morto evidencia-se como o regresso da esperança com o florir interior. O culto dos mortos, desde tempos imemoriais que tem como função, não apenas apaziguar os espíritos prestando-lhes homenagem, mas recordar aos vivos o seu lugar e o seu papel na Terra. Este trabalho trouxe de facto algo de novo à plataforma de criadores de dança, tendo lidado com o culto dos mortos com a naturalidade com que ele é assumido pelos diferentes povos.
A plataforma de criadores portugueses mostrou um pequeno núcleo de coreógrafos que contribuíram para afirmar, uma vez mais, a imagem de Portugal nos destinos da dança contemporânea.
No comments:
Post a Comment