Falar das patologias que se encerram, inusitadamente, dentro de cada um de nós é, por um lado um desafio e, por outro, um grande risco. A estrutura A Bruxa Teatro agarrou esse desafio e arriscou penetrar na mente doente de um coleccionador de borboletas que começa a sentir uma atracção fora do vulgar por uma rapariga. O texto é de John Fowles e a adaptação dramatúrgica de Mark Healey. Figueira Cid assinou a encenação deste texto a partir da tradução de António Henrique Conde. O tema é desconfortável, tanto mais que, ao longo do desenvolvimento do texto, pelo seu realismo brutal, apercebemo-nos de que a possibilidade daquele caso ocorrer na nossa vida não é um absurdo.
As duas horas sem intervalo passaram num ápice. Num cenário que aponta para um desequilíbrio instalado, Hugo Moreira interpreta o psicopata Frederick Clegg, pacato funcionário público, coleccionador de borboletas, que acaba de ganhar um prémio de lotaria, tornando-se milionário. Marta Inocentes é Miranda, a jovem estudante de Belas-Artes que provocou um fascínio tal no coleccionador, que acabou por ser raptada por Clegg e encarcerada numa cave.
Clegg apetrechou a cave com mobiliário confortável, comprou-lhe livros, roupas de acordo com as cores preferidas de Miranda, e até improvisou um pequeno recanto para a sua higiene. Fartou-se de gastar dinheiro com aquelas remodelações. No andar de cima a sua vida ia-se desenrolando com a normalidade aparente de um coleccionador de borboletas. A decoração da sala, de gosto duvidoso, contrastava com a sobriedade que tinha imposto à cave. Na cave a cor crua dominava perante as sobras de papelão dos caixotes reciclados em mobiliário. Em ambos os mundos o desequilíbrio é apontado pela cenografia que cortou as paredes em oblíquo. Tudo está a afastar-se do seu ponto de equilíbrio, desde o cenário até às próprias emoções e relações entre as personagens.
O espectáculo começa com a partilha do olhar do psicopata sobre a sua vítima. Miranda é seguida e filmada sem se aperceber. Ele encanta-se com o seu ar despreocupado, com a sua jovialidade, com o seu sorriso incomparável. A sua mente de coleccionador leva-o a querer apossar-se daquele ser humano, único no mundo. Para além de exemplares raros de borboletas, começa a sonhar em possuir aquela mulher. Para caçar uma borboleta, tem de se estudar o seu habitat, introduzir-se no seu meio dissimuladamente e atacar quando ela menos está à espera. No caso de Miranda, Clegg estudou meses a fio as suas rotinas, os seus hábitos, filmou-a discretamente e, quando teve condições para o fazer, caçou-a numa armadilha. Um pouco de clorofórmio na escuridão de uma rua e Miranda estava enfim nos seus braços, para viver na cave que ele, amorosamente lhe tinha preparado. Mais uma borboleta? Não. Uma mulher única que ele amava e não queria matar para a poder possuir. Não a queria exibir num catálogo, queria sentir a sua presença no fundo da sua casa. Um tesouro enterrado dentro das suas paredes. Um sentimento de posse que não tem a ver com um desejo erótico mas sim com um prazer estético idêntico ao que se obtém quando se consegue adquirir uma obra de arte.
Miranda acorda numa cave com um estranho ao lado e sufocada pelo efeito do clorofórmio. Habituada a viver segundo as suas regras, de forma hedonista, tenta explicar ao seu sequestrador que o facto dele a manter prisioneira é motivo para ela nunca chegar a pensar sequer em amá-lo. Ela tenta que Frederick entenda que não é como uma das suas borboletas, que estão mortas para que ele as possa apreciar. Mas Frederick não entende esse discurso. Para ele, Miranda não tem que se queixar. Ela respeita-a. Não lhe toca porque isso seria incorrecto. Alimenta-a, compra-lhe livros, discos, tudo o que ela quer. Leva-lhe chocolates, flores, até lhe encheu o guarda-fatos com roupas que sabia serem o seu género. Ela não tem motivos para se sentir como as borboletas que estão mortas. Clegg quer Miranda viva, apesar de ignorar que a está a matar aos poucos por dentro. Miranda tenta chegar a um acordo com Clegg: Ela permanece naquela cave mas ele irá libertá-la dentro de 2 meses. Clegg aceita o compromisso sabendo, de antemão, que não o cumprirá. Miranda também finge acreditar que o acordo será cumprido e faz o possível por manter a lucidez na cave escura com a escrita regular de um diário e o registo de um calendário na parede. Clegg visita-a regularmente para lhe dar as refeições e fazer a manutenção da higiene naquele aposento. Miranda tenta enganá-lo para fugir durante uma distracção. Em vão, pois a mente perversa de Clegg pensou em todos os pormenores. E a brilhante estudante de belas-artes, que amava a vida e o ar puro, vê-se enclausurada numa cave sem poder ver a luz do sol, sem poder viver a vida e as paixões que a fazem ser única e rara. Por diversas vezes faz notar a Clegg que ele não pertence ao mesmo nível cultural que ela domina. Ela emenda a sua maneira de falar, de servir o chá, faz-lhe ver que os livros que lhe comprou não são os adequados, apesar de caros. Encomenda-lhe livros sobre pintores contemporâneos, como Mondrian, e música de Bach. Um cavalete para pintar. Porque fotografar mata a imagem. Pintar faz com que a coisa permaneça viva. E Clegg fotografa-a incessantemente. Miranda fá-lo sentir-se prisioneiro do seu próprio percurso, de ter crescido num meio carenciado e discplicente. Fá-lo sentir culpado por ter ganho a lotaria e não saber fazer nada de construtivo com esse dinheiro. A sua arrogância intelectual cega-a ao ponto de julgar que Clegg se deixará seduzir pelo seu corpo. No dia anterior à sua libertação, não acreditando que Frederick irá cumprir o prometido, Miranda oferece-se ao seu raptor, acto que ele considera repugnante. A partir daquele momento Miranda deixa de ser a rapariga única para ser mais uma rapariga vulgar, sem nada que a torne o objecto raro que se deve manter escondido. Miranda percebe que já não tem salvação e a atitude de Clegg muda radicalmente. Não se aproveita do corpo de Miranda, mas humilha-a e submete-a a um terror psicológico que a leva a sucumbir. Mais do que a pneumonia, foi a falta de esperança que matou Miranda. Marta Inocentes interpretou uma Miranda com a veracidade que a personagem requer. Com a força de viver que se anuncia ao longo de todo o texto, com a revolta, com a sobranceria, com a inteligência de uma estudante brilhante que está a fazer o seu curso porque teve direito a uma bolsa de mérito. Hugo Moreira, um pouco titubeante ao princípio, conseguiu recuperar a personagem a meio do espectáculo, tornando-se no perverso coleccionador. De borboletas e de jovens raparigas, pois, depois de ter perdido o exemplar único, já não lhe interessa a qualidade do que irá coleccionar. Irá procurá-las entre os extractos mais baixos da sociedade, para não se sentir inferior e, quiçá, sentirem-se agradecidas pela oportunidade que ele lhes dá de poderem viver uma vida em função do deslumbramento estético de alguém.
Tal como uma boneca sem rosto enclausurada numa redoma, Miranda viu-se privada de vida. O seu sorriso único foi substituído por uma réplica que será sempre imperfeita. Se o sequestro de Miranda teve como objectivo uma admiração que ia para lá do físico, depois da sua morte Clegg transforma-se no verdadeiro coleccionador. À procura do objecto raro que já não existe. Um espectáculo raro, com uma beleza perturbante, que deixa em suspenso a patologia que pode existir no mais pacato cidadão. Um espectáculo para ver e pensar.
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