Wednesday, December 12, 2007

Começar com Beckett


No centenário da morte de Samuel Beckett o Teatro do Bolhão levou à cena o texto inédito em Portugal Começar a Acabar .Um texto deprimente sobre a velhice e o abandono, para o qual, paradoxalmente, Beckett pediu o máximo de gargalhadas. Este pedido insólito tem a ver com a máxima beckettiana segundo a qual, “não há nada no mundo mais cómico do que a infelicidade”. A felicidade é ordeira aborrecida. Beckett, influenciado por Shoppenhauer, denuncia de forma implacável a condição humana. Beckett ri-se do nosso ser miserável, recuperando o sentido de tragédia, a partir do qual une a visão apolínea com o sentido dionisíaco risível. Assumindo esta visão dualista da vida, imerso num profundo pessimismo, o percurso do humano acaba quase sempre no desejo de morte.
João Lagarto desenvolve o sentido dionisíaco do texto e contagiou o público com o absurdo da existência da personagem que interpretou. Neste espectáculo o público é apanhado de surpresa no início e fica suspenso no texto até ao fim. Porque o texto de Beckett é forte e humano e porque a personagem é desconcertantemente bela. Um velho mendigo com roupas velhas e gastas a falar do pouco tempo que lhe resta para sobreviver. O monólogo, Beginning to End" (Começar a Acabar) que estreou pela primeira vez em Paris em 1970, é a junção de três narrativas do escritor: Molloy, Malone está a Morrer e O Inominável, e tem como tema principal a inevitabilidade da morte. Na estreia foi interpretado por Jack Macgowran, amigo e compatriota de Beckett, mas, depois da morte daquele actor, três anos depois, nunca mais foi representada. A versão portuguesa, que coube ao teatro do Bolhão, contou com duas canções originais de Jorge Palma, ambas com poemas de Beckett, que foram interpretadas em palco por João Lagarto. As palavras sucederam-se sofridas e contundentes, numa personagem que se baba e mostra a sua decrepitude, iluminado por três lâmpadas, símbolo de uma vida que se vai lentamente apagando. De resto, o desenho de luz de José Carlos Gomes ilustra de forma notável essa decrepitude no corpo e na alma
Aos momentos em que lembra histórias banais, como a descrição hilariante de como se pode chupar 16 seixos diferentes, colocando 4 em cada bolso, sem nunca repetir seixo algum, seguem-se pausas de introspecção profunda em que o homem prestes a morrer se queixa da vida, da falta de amor e da solidão. Uma interpretação notável. Um espectáculo que irá ficar na nossa memória.

No comments: