A alegoria da Caverna assume-se como um texto eterno, imagem vezes sem conta recontada, que nos mostra a visão platónica da ascensão ao conhecimento e à visão face a face de um mundo sem filtros, verdadeiro. De Saramago a Matriz, inúmeros foram os criadores que partiram deste texto para a construção da sua própria alegoria de uma realidade que tenta ser mas que apenas parece. A eterna dicotomia entre os dos planos platónicos: o ser e o parecer. A verdade e a ilusão. O Mundo das Ideias e o Mundo das Sombras.
Alfredo Gomes pegou na Alegoria da Caverna pelo lado da condição humana. A alegoria do ser humano, prisioneiro de si próprio, retratado em Sísifo, condenado ao pior dos castigos: trabalhar sem um objectivo. Em Platão, e numa leitura mais imediata, o mito centra-se na conformidade com a realidade existencial e com a assunção de uma realidade aparente, mesmo depois de se saber que esta realidade é uma mentira. Alfredo Gomes trabalhou com os seus alunos esta problemática convidando o público a reflectir sobre a dimensão da mentira ao nível da linguagem e ao nível ontológico. Muito interessante o diálogo de Cocteau mantido pelos quatro prisioneiros, recorrendo à técnica da máscara. A assunção da máscara que se mantém, apesar de se ter tentado tirar está, de facto, engenhosa.
A realidade do faz de conta que se vive ao nível dos gabinetes institucionais, semelhante a um universo kafkiano, revela-se sob a parede opaca que protege os directores-gerais ineptos deste mundo. Mas há quem não se conforme com as respostas administrativas e lute por procurar um mudo onde a realidade se imponha sem as eficientes secretárias que nunca facilitam o acesso ao director-geral, sem falsos vendedores que não falam do perigo do endividamento, sem as ilusões dos centros comerciais, que apenas protelam por um momento a ilusão de felicidade. Há os que insistem em varrer as folhas de diante da porta de casa, mantendo-a limpa, sem outros ornamentos que não ela própria. Os que insistem em manter a sua integridade, apesar de saberem que irá ser uma luta desigual, e os que preferem manter-se nos carreiros de formigas, trabalhando como Sísifo, porque o seu objectivo se reduz a uma ilusão: consumir aos fins-de-semana nos centros comerciais, construídos, justamente, segundo Saramago, sobre as fundações da Caverna de Platão. Apenas faltaram os fatos de treino verdes e roxos de Lobo Antunes, com a subsequente troca inusitada de esposas e proles.
Mas este não é apenas um trabalho sobre a ilusão consumista do homem contemporâneo. É um trabalho feito por adolescentes, para adolescentes, com a coordenação de um professor e que nos fala sobre a capacidade de ultrapassarmos os nossos limites. Limites ao nível da capacidade de sonhar, impostos pelo conformismo. Limites impostos pelas moscas que lavam as mãos, como Pilatos, e que se enxotam constantemente. Ultrapassar o limite de nossa capacidade de acreditarmos em nós próprios e pensarmos que podemos construir um mundo melhor, sem termos de estar a varrer constantemente as folhas da nossa ilusão. Limites ao nível da nossa capacidade de transmitir ao outro mensagens que só conseguem passar através da arte.
Este trabalho da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes abre o olhar ao espectador para os vários níveis ontológicos da teoria platónica do conhecimento. O nível mais básico, das sombras, no qual os serem se querem manter, apesar de saberem que aquela realidade é uma ilusão. O nível seguinte, de alguém que já se libertou da sombra, mas que ainda não consegue despertar completamente para uma realidade sem artifícios. A realidade da varredora que teima em afastar o supérfluo mas que ainda não se dispôs a procurar sair da sua realidade sombria. O terceiro nível de conhecimento revela aquele que já é capaz de olhar para os próprios objectos. Esse homem é capaz de se ver a si próprio como arauto da boa nova, anunciando os males de que padece o mundo, pondo os dedos nas feridas, mas ainda não é aquele que é capaz de olhar para a verdadeira fonte da verdade: o bem. Na realidade, esse é o nível mais complicado de se ultrapassar, uma vez que o homem que o alcançou pensa frequentemente que já é detentor do saber que lhe permite olhar para a realidade sem os filtros da ficção. Mas para se chegar ao quarto nível, propósito possível de alcançar para Platão, é necessário assumir a dor física da perda da ilusão. Recordemo-nos do sofrimento físico de Neo, em Matrix, quando vira as costas à ilusão do seu mundo de faz de conta e assume a realidade sem adereços do mundo real. Uma dor insuportável que o espectador experimenta metaforicamente quando é confrontado directamente com a luz do fundo da Caverna. Uma dor a que se junta a incompreensão dos outros, que se sentem confortáveis na obscuridade da prisão. A dor do esclarecimento e da clarividência é tanto menos suportável quanto maior forem as trevas que reinam sobre o seu mundo. Com textos de Alberto Pimenta, Fernando Pessoa, Gil Vicente, Gonçalo M. Tavares, Jean Cocteau, Jerry Seinfeld, Platão e Spiro Scimone, utilizando como suporte musical compositores como Bernardo Sassetti, Shostakovitch, Philip Glass ou Luciano Berio, a Alegoria da Caverna ou a Problemática de Uma Fotocópia Mal Tirada é um espectáculo que intervém directamente na educação de públicos. Pelos autores e compositores de que se serve, desconhecidos para a maior parte do público adolescente, pela temática que utiliza e pelo génio que desenvolve nos seus actores. Um desenho de luz que brinca com a obscuridade e a sombra e consegue dar ao espectáculo a dimensão onírica que se pretende. A defender este espectáculo estiveram Carolina Tempera, Laura Sena, Levi Nascimento, Mafalda Saraiva, Mariana Catarino, Mariana Pereira, Patrícia Jorge, Pedro Roma, Ricardo Correia, Susana Veloso, Teresa Colaço e Vanessa Santos. A direcção esteve a cargo de Alfredo Gomes e Nídia dos Santos. Mas a grande questão do texto permanece: como decifrar uma fotocópia mal tirada? Podemos dizer que o evento Outonos do Teatro, de Portimão, abriu com chave de ouro. Assim os outros espectáculos possam contribuir igualmente para a educação do público e para a edificação do Homem.
Alfredo Gomes pegou na Alegoria da Caverna pelo lado da condição humana. A alegoria do ser humano, prisioneiro de si próprio, retratado em Sísifo, condenado ao pior dos castigos: trabalhar sem um objectivo. Em Platão, e numa leitura mais imediata, o mito centra-se na conformidade com a realidade existencial e com a assunção de uma realidade aparente, mesmo depois de se saber que esta realidade é uma mentira. Alfredo Gomes trabalhou com os seus alunos esta problemática convidando o público a reflectir sobre a dimensão da mentira ao nível da linguagem e ao nível ontológico. Muito interessante o diálogo de Cocteau mantido pelos quatro prisioneiros, recorrendo à técnica da máscara. A assunção da máscara que se mantém, apesar de se ter tentado tirar está, de facto, engenhosa.
A realidade do faz de conta que se vive ao nível dos gabinetes institucionais, semelhante a um universo kafkiano, revela-se sob a parede opaca que protege os directores-gerais ineptos deste mundo. Mas há quem não se conforme com as respostas administrativas e lute por procurar um mudo onde a realidade se imponha sem as eficientes secretárias que nunca facilitam o acesso ao director-geral, sem falsos vendedores que não falam do perigo do endividamento, sem as ilusões dos centros comerciais, que apenas protelam por um momento a ilusão de felicidade. Há os que insistem em varrer as folhas de diante da porta de casa, mantendo-a limpa, sem outros ornamentos que não ela própria. Os que insistem em manter a sua integridade, apesar de saberem que irá ser uma luta desigual, e os que preferem manter-se nos carreiros de formigas, trabalhando como Sísifo, porque o seu objectivo se reduz a uma ilusão: consumir aos fins-de-semana nos centros comerciais, construídos, justamente, segundo Saramago, sobre as fundações da Caverna de Platão. Apenas faltaram os fatos de treino verdes e roxos de Lobo Antunes, com a subsequente troca inusitada de esposas e proles.
Mas este não é apenas um trabalho sobre a ilusão consumista do homem contemporâneo. É um trabalho feito por adolescentes, para adolescentes, com a coordenação de um professor e que nos fala sobre a capacidade de ultrapassarmos os nossos limites. Limites ao nível da capacidade de sonhar, impostos pelo conformismo. Limites impostos pelas moscas que lavam as mãos, como Pilatos, e que se enxotam constantemente. Ultrapassar o limite de nossa capacidade de acreditarmos em nós próprios e pensarmos que podemos construir um mundo melhor, sem termos de estar a varrer constantemente as folhas da nossa ilusão. Limites ao nível da nossa capacidade de transmitir ao outro mensagens que só conseguem passar através da arte.
Este trabalho da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes abre o olhar ao espectador para os vários níveis ontológicos da teoria platónica do conhecimento. O nível mais básico, das sombras, no qual os serem se querem manter, apesar de saberem que aquela realidade é uma ilusão. O nível seguinte, de alguém que já se libertou da sombra, mas que ainda não consegue despertar completamente para uma realidade sem artifícios. A realidade da varredora que teima em afastar o supérfluo mas que ainda não se dispôs a procurar sair da sua realidade sombria. O terceiro nível de conhecimento revela aquele que já é capaz de olhar para os próprios objectos. Esse homem é capaz de se ver a si próprio como arauto da boa nova, anunciando os males de que padece o mundo, pondo os dedos nas feridas, mas ainda não é aquele que é capaz de olhar para a verdadeira fonte da verdade: o bem. Na realidade, esse é o nível mais complicado de se ultrapassar, uma vez que o homem que o alcançou pensa frequentemente que já é detentor do saber que lhe permite olhar para a realidade sem os filtros da ficção. Mas para se chegar ao quarto nível, propósito possível de alcançar para Platão, é necessário assumir a dor física da perda da ilusão. Recordemo-nos do sofrimento físico de Neo, em Matrix, quando vira as costas à ilusão do seu mundo de faz de conta e assume a realidade sem adereços do mundo real. Uma dor insuportável que o espectador experimenta metaforicamente quando é confrontado directamente com a luz do fundo da Caverna. Uma dor a que se junta a incompreensão dos outros, que se sentem confortáveis na obscuridade da prisão. A dor do esclarecimento e da clarividência é tanto menos suportável quanto maior forem as trevas que reinam sobre o seu mundo. Com textos de Alberto Pimenta, Fernando Pessoa, Gil Vicente, Gonçalo M. Tavares, Jean Cocteau, Jerry Seinfeld, Platão e Spiro Scimone, utilizando como suporte musical compositores como Bernardo Sassetti, Shostakovitch, Philip Glass ou Luciano Berio, a Alegoria da Caverna ou a Problemática de Uma Fotocópia Mal Tirada é um espectáculo que intervém directamente na educação de públicos. Pelos autores e compositores de que se serve, desconhecidos para a maior parte do público adolescente, pela temática que utiliza e pelo génio que desenvolve nos seus actores. Um desenho de luz que brinca com a obscuridade e a sombra e consegue dar ao espectáculo a dimensão onírica que se pretende. A defender este espectáculo estiveram Carolina Tempera, Laura Sena, Levi Nascimento, Mafalda Saraiva, Mariana Catarino, Mariana Pereira, Patrícia Jorge, Pedro Roma, Ricardo Correia, Susana Veloso, Teresa Colaço e Vanessa Santos. A direcção esteve a cargo de Alfredo Gomes e Nídia dos Santos. Mas a grande questão do texto permanece: como decifrar uma fotocópia mal tirada? Podemos dizer que o evento Outonos do Teatro, de Portimão, abriu com chave de ouro. Assim os outros espectáculos possam contribuir igualmente para a educação do público e para a edificação do Homem.
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